O lado claro da realidade
Muito se disse sobre a vinda de Roger Waters ao Brasil, comparando ele, e seu show, ao que os seus antigos companheiros fazem com o Pink Floyd, que um dia ele liderou, em apresentações que nunca passaram, nem de perto, por aqui. O que não preocupou nenhuma das pessoas que lotaram a Praça da Apoteose no Rio de Janeiro em uma noite de sábado de céu estrelado e clima agradável, depois de um dia de muito calor.
“In the flesh”, música título do disco ao vivo e da turnê, abre o show. Na introdução, inesquecível e maravilhosa, todos os presentes sentem que aquela será uma noite arrebatadora e que o passado de cada uma delas estará presente em cada acorde dos clássicos do Pink Floyd que Roger e sua banda despejarão sobre todos. Braços erguidos, gritos de euforia, a Apoteose ovaciona aquele que esteve em suas adolescências, até hoje.
Roger aparece ao fundo do palco, todo de preto, empunhando seu baixo. A primeira imagem impactante que aparece no telão ao fundo, já que os dois das laterais reproduzem as imagens do palco, são dos martelos marchando em uma cena do antológico “The Wall”, de onde “In the flesh” foi retirada.
Outro momento marcante foi quando começaram os sons de helicóptero na abertura de “Another brick the wall, part 2″ – neste quesito, o som do show foi um espetáculo. Nunca vi um sistema de colunas ser tão bem colocado em um espaço aberto. Foi um show de qualidade sonora, em vez das pirotécnicas que tendem a esconder defeitos. A distribuição das colunas, colocadas no extremo da Apoteose, de frente pro palco e dos lados, atrás das arquibancadas, permitiam piruetas sonoras nos alto-falantes. Tudo isso para que os efeitos sonoros, como esse do helicóptero, fosse sentido com toda a qualidade pelo público. Delírio total, gente em êxtase parecendo não acreditar no que ouvia, e via. Como era apenas a terceira música, acabou pegando muitos atrasados, que corriam desesperados pela passarela do samba, que naquela noite pertencia ao rock, procurando uma brecha na multidão para curtir a sua música preferida.
“Mother” trouxe Roger empunhando um violão para tocar esta balada cheia de contornos melancólicos, em outro momento de arrebatamento da platéia. É improvável que eu volte a ver um acender de isqueiros, momento brega para alguns, ganhar contornos tão emocionantes quanto aqueles vividos durante este outro clássico do “The wall”.
O show de Roger Waters sai na frente de muitos que estão por aí, não no aspecto de qualidade das músicas, mas naquilo que ele, com suas canções, representa na vida de cada um presente ali, para reverenciá-lo naquela noite. Ele esteve junto com essas pessoas em muito momentos de suas vidas. Vendagens ou opiniões de críticos de música nunca vão apagar isso, até correm o risco de parecer sem sentido.
“Southhampton dock”, do disco “The final cut” e “Pigs on the wing, part 1″ foram tocadas antes da maravilha progressiva de “Dogs”, que começa com latidos de cães. Durante a execução da música, enorme pelas inserções dos teclados de Harry Waters e Andy Wallace, uma mesa de carteado surge no fundo do palco. Roger e alguns integrantes sentam e começam um animado jogo de cartas.
Isso enquanto o psicodelismo rola solto nos efeitos dos teclados. Os anos 70 renasceram em plena Apoteose. O riff de guitarra surge durante a música e todos parecem ter, alguns há bem pouco tempo atrás, 15 anos novamente.
“Welcome to the machine” foi anunciado com sirenes de ataque aéreo. Criando um clima de expectativa antes do começar da música. Ao primeiro acorde de “Wish you were here”, todos gritavam e começaram a cantar junto com Roger. Uma canção eterna por toda sua beleza de balada, seu significado e porque traz muito do que seu autor tem de melhor como compositor.
Antes da segunda parte do show veio um intervalo de meia-hora, próprio para se aguentar três horas de apresentação, o melhor que foi tão agradável que elas passaram rápido. “Set the controls for the heart of the sun” com projeções de imagens antigas da banda no telão foi muito bem recebida pelo público.
“Breathe (in the air)” foi a entrada para o bloco dos clássicos de outro disco antológico do Pink Floyd, “The dark side of the moon”. Como ali ninguém estava em nenhum lado escuro, ficou claro que seria impossível esquecer tanta adoração por um dos discos mais respeitados, e adorados, de todos os tempos. “Time”, com o impagável despertar dos relógios e a percussão do batera Graham Broad em choque com o teclado de Andy Wallace marcado o encontro do primitivo e o moderno, juntos no tempo, e “Money”, com as caixas registradoras ditando o ritmo da música, deram um completo entendimento de que “Dark side” é aquilo tudo que se diz dele. Pena que as duas foram cantadas pelo ótimo guitarrista Andy Fairweathe-Low, que mostrou ter um timbre muito parecido com o de Waters.
Neste momento do show entraram algumas música desconhecidas do público, esfriando a galera que ficou prestando atenção na qualidade das músicas. Destaque para os contornos psicodélicos em “Perfect sense (sense I and II)” onde uma das backings levantou a platéia com sua performance. “Brain damage” traz o nome de mortos de guerra. “Eclipse”, outra do “Dark side…” foi tocada antes do momento apoteótico – desculpe o trocadilho – que foi “Comfortably numb”. Loucura total, gritaria geral, gente se abraçando, senhores de quarenta anos parecendo pré-adolescentes. Este tipo de show faz bem para as pessoas, tira-as de sua realidade, transportando-as para um lugar e momento mágicos onde ficaram as suas melhores recordações. Não há mídia que construa isso, e nem a lógica dos entendidos pode lutar contra ela. Tudo que se diga contra, soa falso e sem sentido quando a emoção entra em cena. Através dela que a música se mantém eterna.
No bis que encerrou esta noite gloriosa, veio “Each small candle”, um libelo contra a opressão, com uma mensagem escrita junto com um arame farpado cortando a tela. Um final que não empolgou, mas não importa. O pessoal, de todas as idades, famílias inteiras e muitos grupos de adolescentes, além daqueles de cabelos brancos, que não eram poucos, saíram satisfeitos. Um sorriso no
rosto de quem viu o seu ídolo. Não importa o que digam. A verdade é que muita gente gostaria de ter, ou que seus ídolos tivessem, um repertório a disposição como o senhor Roger Waters tem.