Textículos de Mary: “Nós somos uma banda de excluídos”

A banda, no Abril Pro Rock 2002
Num Recife escaldante dos anos 90, um travesti que se prostituía no centro da cidade é estuprado dentro de um banheiro público por quatro caras mal encarados. Agredida e humilhada, Mary tira a gilete que estava na gengiva e resolve por fim a tudo aquilo: corta suas genitálias e some do mapa. Jogados ali, os testículos de Mary ficam fermentando com esperma, urina e muita flora bacteriana. Desse coquetel molotov, surgem três travestis mutantes. Loucos e que não agüentam mais o Mangue Beat, Chupeta, Silene Lapadinha e Lolypop têm uma missão: conquistar o mundo. Como um vírus, infectar a imprensa, o público, as bandas. O motivo: o bom e velho Rock´n Roll.
Ficção Científica Trash demais? Nem tanto, se essa história não tivesse um certo quê de realidade. É esse o ponto de partida da banda pernambucana Textículos de Mary e a Banda das Cachorras, tida como uma das maiores revelações da cena musical recifense. A primeira conquista desses seres mutantes? O lançamento do CD Cheque Girls pela Deck Disc, produzido por Rafael Ramos (Mamonas e João Donato). Abaixo, uma entrevista com Fábio “Chupeta”, vocalista da banda, que fala de música, rock´n roll, mangue, sexualidade e pirataria.
Vocês são contemporâneos de um movimento muito forte aqui no Recife, o Mangue Beat, e formaram uma banda de rock sem qualquer traço da cartilha que rezava Chico Science. Vocês não gostam do Mangue?
Não é uma questão de gostar. Se você analisar, o Mangue abriu as portas para muitas coisas, foi um movimento importante porque voltou as câmeras não só do Brasil como do mundo para cá. E isso abriu um espaço para outras coisas acontecerem, porque nem tudo aqui é só Mangue. O que eu não gosto é da ditadura do Mangue. É fazer a coisa virar uma imposição. Se você não tiver tocando maracatu ou fazendo fusão musical, não é legal. É isso que eu não acho que é certo, pois não é assim que funciona. Hoje, você tem Devotos (ex-Devotos do Ódio), Mata-la na mão. Outra galera que faz outro tipo de coisa. E isso termina virando uma camisa de força. Milhares de bandas que surgem hoje são clones daquilo que aconteceu há dez anos atrás.
Como é que você analisa a reação da platéia em relação ao movimento Mangue?
Por aqui acontece uma identificação muito forte porque o movimento deu sentido para muita gente. Se você for nas áreas populares, nas favelas, você vai perceber que todo jovem gosta de Chico Science. E isso é o lado positivo do Mangue. As pessoas pensam “Que bom! Eu sou alguma coisa”, nem que seja um Mangue boy clonado. Mas, fora daqui, a mídia, que é uma máquina de consumir coisas novas, é como se tivesse saturada. Tudo que surgia aqui ou era igual à Nação Zumbi ou igual a Mundo Livre. E ficou nisso. Por isso que eu acho que a aceitação ficou mais fácil por causa da saturação do mercado, não das críticas ou das pessoas que escutam pois Mundo Livre e Nação tão aí produzindo. E aqui, eu acho que o Rock´n Roll tava se perdendo. Nas festas, você não ouvia mais. Você tinha que ir para os guetos, alguns bares que tivessem radiola de ficha com discos de rock. Era como se Rock´n Roll não existisse, tudo tinha que ter batuque. A galera que vai pro show da gente, que dança, que faz roda, é skatista, a galera rock´n roll, que vê MTV, que escuta Marlin Manson. E era essa a linguagem que tava faltando na cena daqui.
O show de vocês é super performático, tem toda uma produção. De onde vem essa postura no palco?
O rock´n Roll, durante muito tempo ficou catatônico, ficou em coma. Era como se tudo já tivesse sido feito, não havia novidades. Tom Zé diz isso, muitas pessoas também dizem isso. Então, com as possibilidades esgotadas, você tem que reler. Então, você relê tudo aquilo com uma postura clichê, imitando tudo o que já foi feito, não adianta. Eu não vou morrer de overdose, eu não vou ser preso… Isso era bonito naquela época. Então, como trazer aquele espírito, como trazer isso pro contexto de hoje, século XXI. Ou seja, vamos criar um mundo fictício, uma realidade paralela, virtual. Onde se misturam realidade e ficção, onde eu não sou mais Fábio, Henrique não é mais Henrique… E nesse mundo a gente traz todos os clichês do Rock´n Roll, pra dar um gancho, criar uma imagem para as apresentações. Porque, na minha opinião, é isso que é bom num show, você trazer uma imagem. E foi daí que nasceu essa história, começou com brincadeira de festa de aniversário, depois nas festas dos Milagros (bar em Olinda freqüentado pelo mundo underground), depois na Soparia (bar no Recife) e depois pro Rec Beat (festival aletrnativo durante o carnaval), Abril (Abril Pro Rock). Então, o monstro criou vida própria e eu perdi o controle (risos).
Como é que aconteceu o convite da gravadora?
A partir de uma matéria que eles (a gravadora Deck Disc) viram na Show Bizz sobre o Rec Beat, eu não sei se foi o 2000 ou o 2001 (foi o festival de 2001). Eles acharam interessante, mas só conseguiram entrar em contato depois que a gente foi fazer uma entrevista no João Gordo, depois da apresentação no APR de São Paulo (também em 2001). O pessoal da gravadora ligou para a MTV, que passou os contatos para eles. A gente fez tudo por telefone, conversou, definiu os termos do contrato e eu terminei assinando, aí eu pensei “ai meu Deus, o que é que eu to fazendo?”
Você nunca pensou que assinaria um contrato, partir para uma coisa mais profissional?
No começo não, depois eu fui me acostumando. Mas que ia ficar tão grande assim, não. Quando eu tava lá, nas gravações, eu via Roberto Menescal, Ritchie, Elimar Santos passando, aí eu pensei “mudei de lado”, atravessei a película que separa quem faz de quem escuta música. Na verdade, ainda tô me adaptando com a coisa.
E por falar nisso, como é que está o CD? O que podemos encontrar em “Cheque Girls”, vão ser só os clássicos do início da carreira?
É, vão ser só as mais antigas, dividido por uma ordem cronológica. Vai ter Todinha (paródia da música de Xuxa, She-Há, dos anos 80) e Entradas e Bandeiras (Beth facista, puta safada/ Não gostava de negros/ Até ser currada às três da manhã/ Numa encruzilhada por vinte negão… ) entre outras. Porque Texticulos de Mary tem uma história fictícia do surgimento. Então, é como se fosse uma história programada, porque não dá pra ficar 20 anos tocando TM, satura. Não dá pra ser um Roling Stones. A gente pode até ficar 20 anos tocando, mas não vai ser mais TM, o nome pode até continuar o mesmo, mas não vai ser mais isso que começou. O 1o., 2o. e 3o. discos já estão programados. A ascensão e queda. Esses personagens têm uma história contada. São astros do Rock dos anos 70 que por erro do destino renascera como vírus de computador, um vírus suburbano. Agora, eles vão invadir a mídia e decair como muitos dos astros do Rock fizeram…
Agora, vocês tão entrando no mercado, vocês vão fazer parte de um sistema que exige que o disco venda, ou que se apresente no Faustão. Como é que vocês pensam isso, já que oficialmente TM “atravessou a película”?
Eu penso muito nisso e é estranho pois existe uma barreira no próprio TM. O discurso, ou o que eu vou falar não vai ser uma coisa que vai poder passar de tarde para s crianças verem. Quando alguém perguntar como é que a banda surgiu, eu vou responder que foi um travesti que se prostituía no centro da cidade, entra num banheiro público e estuprado por 4 homens que estavam lá fumando maconha. Eu não posso contar isso!! Aí, ela leva uma surra desses caras e quando eles vão embora, ela tira a gilete que tava na gengiva e corta as genitálias, joga no chão e some do mapa. E nesse processo, lá com esperma, urina, flora bacteriana e o calor do Recife, acontece uma reação mutante a partir do código genético e surge esses três travestis mutantes que a gente encarna. Essa história começou junto com o processo de revitalização do Recife Antigo que botou a galera que morava lá pra fora. O que hoje é barzinho e restaurante antes era putero e hotelzinho pra travesti e prostituta. Então, aconteceu uma reutilização num espaço dedicado a marginalidade notívaga. Juntamente com isso surge, no mundo virtual, os TM. Então, esses três monstros vão começar a invadir a cena Mangue, a gente entra num bar e tem uma banda tocando, a gente não agüenta o som e voa em cima e contamina esses caras e eles viram a Banda das Cachorras e passam a tocar com a gente. E é mais ou menos aí que a gente volta para realidade. É por aí, nunca que eu vou poder chegar e tocar isso no show da Xuxa, né? Porque vai ser só pi pi pi pi, só apito, eu falando e editando na televisão. Vai terminar inventando a língua do pi.
E por falar em PI, as rádios vão tocar “Propóstata” com a censura desses sinaizinhos eletrônicos, como é que vocês estão encarando isso?
Eu achei do caralho, a gente no começo ficava dizendo que ia ter uma música que ia ser pi do começo ao fim. E é essa a maneira de chegar e tocar nas rádios. Eu acho até interessante, porque é um anti-markenting, uma coisa que é proibida atrai muito mais. Tem disco que tem uma capa censurada, como um de Ângela Ro Rô quando ela foi presa, que foi totalmente censurado desde as músicas até a capa e foi um disco que não sobrou nas prateleiras das lojas. Todo mundo queria ver o que tinha sido censurado, quando na verdade não tinha nada demais, era só a foto do rosto dela. Todo mundo imaginava que ela tava lá, engatada com Zizi Possi. Isso atrai, isso é bom. Esconder o que a gente tá mostrando vai fazer as pessoas procurarem onde é a gente tá mostrando tudo e que a televisão não deixa. E se eu tiver de ir pro Faustão eu vou dizer que a apresentação vai ser numa versão light e que quem quiser ver o que é a gente mesmo tem que ir pro show, porque a gente tá se apresentando todo reprimido.
E quanto à pirataria? Agora que vocês estão entrando no mercado formal, isso não assusta vocês?
É ruim que vai tirar lucros das gravadoras. Mas quem não tem dinheiro para comparar um CD de R$ 20 ou 25 vai comprar como? Tem que comprar um genérico mesmo. Se um dia eu passar na rua e ver o CD da gente pirateado eu vou achar ótimo, porque isso é sinal de que há uma demanda e de que as pessoas querem escutar a gente. As pessoas que tem grana pra comprar um CD na loja vão comprar na loja, porque lá o CD tem mais qualidade, tem o visual, as letras, essas coisas. E as pessoas que não tem dinheiro vão lá e compram o genérico. E isso é um sinal positivo, porque existem pessoas que querem comprar mas não tem dinheiro, existe uma demanda para os CDs, isso é ruim para os lucros da gente da gravadora, mas é bom porque a gente vai fazer mais shows, as pessoas vão saber que a gente existe. É na verdade uma faca de dois gumes, um problema que as gravadoras terão que solucionar logo.
Quanto ao show, vocês percebem algum tipo de diferença quanto à reação da platéia em relação à apresentação?
A platéia pernambucana é conhecida como uma das mais chatas, chatas não, crítica. Por que ela interage com o show de uma maneira ativa, se eles não gostam do show, eles vaiam do começo ao fim, mas não saem de lá. É diferente de outro público, lá em São Paulo se eles não estão gostando do show, eles saem. Então aqui, o público gostando ou não, você tá sempre sabendo o que tá acontecendo. É diferente do público do Sul, quando a gente foi tocar no Rio e em São Paulo, o público de lá é muito mais parado e observador, eles prestam muito mais atenção, aqui, não quer dizer que eles não prestarem atenção, mas você vê muito mais eles dançando, se divertindo, jogando coisa, chamando a gente de veado, de bicha. Lá eles ficam olhando, são uma platéia assistente. É uma platéia interativa aqui. Quando o show é aberto eu prefiro porque é o povão que vai, é um calor do caralho. Em Camaragibe (subúrbio do Grande Recife) foi o melhor show que eu fiz, o público inteiro era uma roda de povo, eu não acreditei no que tava vendo. Então, quanto mais interação, mais a gente escracha. Se a platéia tá muito olhando, a gente vai mais devagar porque sabe que se for fazer mesmo vai chocar e eles vão sair e ninguém assiste mais show. O povão, gritaria essas coisas, a gente vai a lama, faz umas coisas escatológicas e o público adora. Porque tem um feedback, o público alimenta esse comportamento.
O público GLS não aprova Texticulos de Mary, nem como banda nem como comportamento em palco, a que você atribui a isso?
Foi criada uma fatia de mercado para o que se convencionou chamar público GLS. E apesar de ser uma minoria social, o público GLS é uma gama de gente, tem diversos tipos de públicos dentro do público GLS. Tem o público que vai pra boates, que gosta de música eletrônica, que vai pra shopping… Esse tipo não gosta da gente, a comprovação disso foi um show que a gente fez na Cats e foi horrível porque é um público que não escuta rock, não gosta de rock, que acha a postura do rock´n roll agressiva. E isso é exatamente tudo o que a gente é. Essa galera não gosta. Tavam lá as mariconas e seus michês, aliás, todos os michês adoraram, as bichonas não. Mas teve um show que foi no encerramento do Mix Brasil que foi ótimo, a maioria do público era gay, mas era um povo que gostava de Rock´n roll. A gente não é uma banda para gays, porque um vampiro não gosta de se olhar no espelho, né? A gente é uma banda pra todo mundo, uma banda de excluídos. A gente tá falando de sexualidade humana, só que a partir da ótica de um homossexual, que sou eu, eu só posso falar das coisas que eu conheço. Eu tenho muito medo de levantar bandeiras, porque a gente termina repetindo algumas coisas erradas, vocês assume posturas de segregação do tipo você é gay fica desse lado, você é careta fica desse outro. Por que careta? Só porque ele não gosta do mesmo sexo? Isso é quase nazismo. Movimento para mim, só pélvico.
Como se dá a criação das músicas de vocês, vocês tem algum tipo de ritual?
Às vezes eu tô com uma coisa na cabeça, aí sai uma letra já com uma melodiazinha cantada no violão, tiro as notas e levo para o estúdio. No estúdio, esquarteja, volta tudo, faz, refaz. Aí é que surge a música. A maioria das letras quem faz sou eu. As músicas surgem simples porque é o que eu sei, minha capacidade musical não vai além dos básicos acordes, mas quando chega nos estúdios os arranjos vão se moldando, vai ganhando algumas sonoridades. Mas a base é essa uma música simples. Até porque a proposta é essa: acabar com muita técnica, vamos fazer uma coisa visceral e visceral é simplicidade.
E a turnê de vocês? Quando é que começa?
A gente ainda não sabe, tá esperando algumas coisas ficarem definidas, fechar clipe, prensagem de CD. Deve tá começando no início de junho.
Vocês estão em fase de preparação do primeiro clipe, como está sendo essa experiência?
A gente tá em fase de negociação, vendo roteiro. Por que eu tenho uma idéia, mas são meio megalomaníacas, tudo que eu faço tem que ser apoteótico, por isso tem que baixar a bola. Tem que falar com a produtora, a Rec Produções, Lírio (Ferreira, diretor do filme “O Baile Perfumado”) é quem vai dirigir, tem essas coisas. Eu tenho uma idéia de clipe, mas tem que se moldar à realidade financeira. Mas, vamos ver o que é que sai. Por enquanto, a gente só tá chocando ovos e eu não agüento mais.
E os próximos trabalhos? Como é que vai ser, vocês já tem alguma coisa em mente?
O segundo disco já tá pronto, o terceiro já tem algumas músicas , mas a história já está traçada. O contrato com a gravadora inclui três CDs e um talvez, aí se der certo, vamos vê.
Vocês não têm medo de se tornarem mais uma banda engraçadinha?
Eu não deixo. É a própria postura sabe? É aquele tipo de piada engraçada mas que depois te deixa constrangido. Tem uma outra coisa por trás da maneira de contar que não é tão engraçado assim. Na verdade, a gente tá rindo dos próprios problemas. A gente vai ser uma coisa constrangedora, nunca vai ser engraçadinha. E as músicas do começo são bem engraçadinhas, mas as mais novas não são nada engraçadinhas. São agressivas, escatológicas, bem psicopatas… Tem uma, que é a Sexta Feira 13, a gente já tá tocando nos shows. É a história de um travesti que foi operado e é preso por pedofilia porque ficava transando com os cheira colas na cidade, quando chega na delegacia o delegado não sabe se manda ele pra Aníbal Bruno (presídio masculino) ou para o Bom Pastor (para mulheres). Nisso, ela é solta e continua atacando o mundo. Fica famosíssima como Geisa Kelly.
Com tanta história, TM vai ficar só como banda de Rock´n Roll?
Não tem de tudo, tem história em quadrinhos tem artes plásticas. O HQ eu espero que saia logo. A idéia é juntar tudo pra chamar a atenção da galera para o Rock´n Roll, porque eu não poderia me matar, ou sair por ai defendendo o mundo gay. Então, a gente traz várias linguagens para contar uma história só. Como se fosse uma dessas histórias populares que cada um conta de um jeito diferente, só que nesse caso a gente conta através de mídias diferentes. O disco, o show, as capas, as fotos, várias ramificações em torno da lenda TM. É uma forma de mostrar uma galera que não tem representação social nenhuma.
Mesmo não querendo levantar qualquer bandeira, vocês não acham que tem uma certa responsabilidade em relação a isso? Afinal de contas, ainda é muito complicado falar sobre isso, representar o homossexual sem ser aquele estereótipo da bicha louca, engraçada, travestida etc…
Na verdade, a sexualidade é uma coisa muito negligenciada e eu acho que a gente precisa fazer uma análise mesmo sobre a sexualidade sabe? Seja ela física, astrofísica, biológica, histórica, metafísica etc… Não interessa se quem veio primeiro foi o ovo ou a galinha, o que importa é o ato, o acontecimento, o sexo. E trazer a sexualidade em foco é o que eu quero. Só que fazer um tratado científico disso é complicado, é chato. Ninguém ia se interessar, ninguém iria ver. Com TM não, as pessoas veêm, nem que seja para ficarem horrorizadas.
Mais Textículos de Mary
Na internet: Ao que parece a banda ainda não tem um site oficial, mas quem quiser ter uma noção do que é a Textículos de Mary em ação pode conferir o site NetSiri (clique aqui), que traz matérias, fotos e vídeos da apresentação da banda no último Abril Pro Rock.