Gilberto Gil fala sobre “Kaya n gan daya”

A capa do disco
Gilberto Gil acaba de lançar o “Kaya n’gan daya”, uma homenagem a Bob Marley. O CD foi gravado no Rio de Janeiro e nos célebres estúdios Tuff Gong, na Jamaica. São 16 canções, a maioria em inglês. O DVD é um documentário feito pela Conspiração Filmes e mostra, além do show prematuro (feito antes do lançamento do CD), o making of da gravação do disco e a emoção do compositor nos passeios pelas ruas do país e na entrevista que fez com Rita Marley. Em entrevista coletiva em São Paulo, Gil falou sobre as gravações do CD e do DVD e sobre sua admiração por Bob Marley. Com os gestos largos e a fala mansa, ele traçou o caminho de sua viagem à Jamaica, reproduziu conversas com amigos e falou de suas influência musicais e pessoais. Vestindo um agasalho esportivo, Gil contou e cantou sua paixão pelo reggae. Visivelmente emocionado e feliz com o trabalho atual, ele conversou com os jornalistas durante quase duas horas. O bate-papo só foi interrompido porque Gil não podia perder a hora da última ponte aérea.
Como foi a escolha das músicas?
Gil: Usei critérios a partir de várias premissas. Primeiro, a questão da paixão. Escolhi as que permaneciam mais vivas pra mim. “One

Gil em Trenchtown, Jamaica
Quanto aos arranjos, você optou por preservar os originais?
O “Easy skankin”, por exemplo, tem aquela beleza oriental e aquele bordado vocal das I-Three [grupo vocal que acompanhou Marley], que eu mantive. Não quis fazer uma releitura demasiadamente personalizada, quis mostrar como foi. Como fiz com o Gonzaga. Lembro-me que um dia, uma pessoa me disse que estava ouvindo “Ó Eu aqui de novo” e pensou que era o Gonzaga.
Como foi o trabalho na Jamaica?
Eu gostava da idéia de fazer lá, mas depois eu quis ficar aqui. Eu

Mais Gil em Trenchtown
Pode falar um pouco da sua única composição no disco?
Eu fiz a “Table Tennis Table” na quarta-feira de cinzas. Queria uma música minha que resumisse o sentimento de ter gravado as canções de Marley. Eu deveria ter feito antes ou durante os trabalhos, mas cheguei à Jamaica sem ela. No avião, na volta de Kingston para Miami, estava lendo uma dessas revistas de bordo, que falava de um resort e mostrava os salões de festa, de ginástica, de jogos. E trazia a expressão “table tennis table”, ou seja, mesa de tênis de mesa. Achei bonito esse jogo de espelho. Era um final de tarde. De repente, enxerguei um cenário, eu e ele jogando ping pong. E vi que não podia ser ele, era eu comigo, “I and I”. E essa expressão, “I and I”, é muito conhecida no dialeto rastafari. Significa “nós” e aparece bastante nas músicas do Marley. Fiquei pensando naquilo. No carnaval na Bahia, o Jorge Mautner gravou uns textos comigo, para os intervalos da músicas. Num deles, ele lembrou o discurso de Cassius Klay, em que ele disse “me we”. E o Cassius Klay é um ícone da negritude, um grande guerreiro. À noite, eu estava muito cansado, rouco, mas fui fazendo essas brincadeiras e escrevi a canção.
Como escolheu as músicas para traduzir e como foi o processo de tradução?
“Kaya” foi de cara. Estava no LP que consolidou o Marley na nossa vida: minha, do Caetano, da Regina Casé, da Nara, dos nossos amigos todos. Foi o hit do verão de Salvador em 1978. A tradução ficou até bastante literal. Kaya significa “erva curativa”. Então, aquilo do fumacê era natural. Mas as outras não foram fáceis de traduzir. “Time you Tell” foi difícil. Embora eu compreenda o sentido, a mensagem contra a civilização ocidental. É uma canção hyppie. Mas não é o meu jeito de dizer. Não levanto espadas assim. Uso mais as armas da democracia que da guerra. Mas eu queria traduzir. Passei muito tempo pensando até fazer um jogo de oposição de temperamentos, entre o meu e o do Marley. Então, usei o tempo pessoal. O tempo como entidade mítica e como uma dimensão racional, científica. A idéia de tempo que permeia a maioria das minhas músicas, como “Tempo Rei”. “Lively up yourself” deu um trabalho danado. Queria a sonoridade do verso. Mas como passar isso para o português? Então veio “Eleve-se auto ao céu” [risos]. Levei meses até encontrar. Cheguei a tentar traduzir “Get Up stand up”, mas não gostei. O Thiago, irmão do Gabriel o Pensador, mandou uma versão para mim, melhor que a minha, mas faltava resolver essa questão da sonoridade. Se não tem o som, não interessa. Não adianta sair do original. Não são as palavras, é o som, a música [risos]. Queria cantar aquela sonoridade do dialeto [cantando]. A beleza é aquilo. Quero cantar um inglês de colônia e a Jamaica tem o mais belo. Assim como o português do Brasil é o mais bonito. Como dizia Noel Rosa, já passou de português [risos].
Como foi a gravação do DVD?
Eu deixei nas mãos do Lula [Buarque]. Tenho confiança no trabalho dele e um diálogo estético. Já temos um bate-bola. Conheço o essencial do Lula. Eu disse a ele: “a câmera é com você”. Ele ia me mostrando o resultado. Acho que foi bem aproveitado o making of do disco. Era uma câmera pouco invasiva, discreta. Até porque a equipe do Lula era pequena, com quatro pessoas. Ele registrou coisas realmente espontâneas. O resultado é bonito. O show também ficou bonito. Foi feito de última hora. É um show prematuro, feito antes do disco terminar, de colocar os adornos que o disco tem. Foi gravado no dia 21 de dezembro do ano passado, no DirecTV Hall. Mas o resultado é bom.
Você já pensava em lançar o DVD?
Essa coisa de DVD é nova. A idéia para o lançamento simultâneo é inédita. Geralmente, as pessoas lançam depois do show, quando a temporada está no final. A gente teve de se virar pra fazer antes do disco ser lançado.
Você acredita que será impossível para os cantores não lançarem DVD’s?
O meu é o primeiro lançamento simultâneo, do disco e do DVD. As gravadoras pensam que é um bom negócio. Eu não tenho de acreditar nisso, nem desacreditar. Fico neutro. O meu DVD ficou bonito. Eu, gravando na Jamaica, montando, fazendo o disco. Acho bacana. Meu primeiro DVD foi o do Acústico.
Como foi tocar com pessoas que trabalharam com Bob Marley?

Gil e Rita Marley
E a participação do Paralamas do Sucesso?
Quando eu estava no meu sítio, em Araras, no Rio de Janeiro, a Flora [esposa de Gil] disse: “você lembrou de chamar os Paralamas para participar do disco? Acho que é imprescindível”. Eu respondi que eles estavam desfalcados. A rigor, não estavam existindo. O Herbert Vianna acidentado, o Bi e o Barone fazendo outros trabalhos. Mas a Flora falou pra chamar o Bi e o Barone porque eles são os Paralamas. Eu disse: “está bom, vou chamar”. E fui para a Jamaica. Quando voltei, vi na TV o Herbert cantando e tocando sua violinha. Fui até a casa dele e contei que queria gravar “Them Belly Full” com os Paralamas. Ele me mostrou duas ou três canções novas que ele compôs depois do acidente. O Herbert queria gravar “Exodus”, que ele acha que é um talismã da banda, uma música de abertura de caminhos. Eu concordei. Semanas depois, ele mandou recado que gravaria “Them Belly Full”. Fomos para um estúdio no Rio, que tem rampa para cadeiras de rodas. Passamos o dia gravando. O Zeca Pagodinho estava no estúdio ao lado. O Zeca foi nos visitar, levou uma cachaça. Foi ótimo.
Em 80, você fez uma turnê com o Jimmy Cliff. Gostaria de ter feito com o Bob Marley?
Mas é claro! Ave, Maria! O Cliff é meu amigo, mas não é o Bob Marley. Ele é um dos três maiores do reggae. Divulgou muito o reggae, internacionalmente. Foi muito amado na Bahia, em Salvador. Mas o Bob Marley é para o reggae o que João Gilberto é para a bossa nova. E ninguém é João Gilberto, que é insubstituível. É claro que o reggae teve desenvolvimento depois do Marley, mas verdadeiro é como o dele, ele é especial.
Você se encontrou com o Marley?
Não me encontrei com ele. Vi um show dele em Los Angeles, em 1978. Eu voltava de Montreux, estava em processo de gravação do “Nightingale”. Fui ao camarim do Marley, mas ele já tinha saído. Quando ele veio ao Rio de Janeiro, esteve com o Chico Buarque. Há uma foto deles, junto com o Moraes Moreira e o pessoal que estava lá, no Museu Bob Marley, em Kingston. Eu não pude encontrá-lo. Estava na Bahia.
Sabe se ele conhecia seu trabalho?
Uma vez, um jornalista português me disse, em Lisboa, que tinha falado com ele e me deu a entrevista com o Marley. O jornalista perguntou se ele conhecia o Gilberto Gil. Ele disse que sim, que sabia que eu tinha gravado “No Woman No Cry” e disse que gostaria de me conhecer. Foi a única referência…
Você prefere as releituras mais próximas do original ou mais pessoais?
Como apreciador, gosto das duas coisas. Mas não gosto das gravações que mudaram demais as músicas. Não têm sentido. Não se encontra mais o Marley nelas. E ele é um estilo, assim como João Gilberto. Reggae é Bob Marley. Eu quis homenageá-lo de autor para autor. Quis mostrar: “aqui está a gênesis de um gênero”. Marley é um clássico assim como Antônio Carlos Jobim. Quis ser fiel ao caráter inicial. O reggae é um gênero clássico e está fazendo 30 anos. Pensei: “está na hora”. Os caras nos ensinaram como fazer. É como estudar aritmética. Um mais quatro são cinco. Está escrito assim, os caras disseram assim.
Mas em algumas canções, há instrumentos pouco convencionais no reggae, como sanfonas.
Não necessariamente oculto minha identidade, mas dou a ela um descanso que me propicia um exercício da outra faceta. E Gil está lá, não está se escondendo debaixo da sombra do Marley. Tenho vontade de fazer isso com o samba, pode ser meu próximo CD, fechando uma trilogia. E meu trabalho tem muita sujeira. Não sei usar a acepsia. Os músicos dizem: “teoricamente, não está correto, mas ficou bonito”. Eu gosto de trabalhar assim. Eu quis colocar sanfona nos meus reggaes. Disseram para eu não colocar. Eu disse: “vou botar”, vou sujar. O Gonzaga já dizia que o reggae é um forró sem vergonha.
Você gostaria que sua obra fosse relida assim?
Eu não sou João Gilberto, Bob Marley, Luís Gonzaga. Eu fui tropicalista, fiz aquela geléia geral. Não tenho uma linha mestra ligando tudo a sei lá o quê. Eu já me escrevi assim, em muitas línguas, muitos dialetos. Não posso exigir isso de ninguém. Os três podem reinvindicar isso.
O que acha de uma opinião que diz que o reggae acabou?
É o mesmo tipo de enfoque que se quer dar à música popular brasileira. Dizem que Lulu Santos e Carlinhos Brown não são MPB. Não são como os cânones. Mas se você vai pegar os artistas jamaicanos ou ingleses, que surgiram logo na esteira do Marley, todas essas corrente e decorrentes, como o drum’n bass, especialmente na cena inglesa, sinceramente não acompanho porque não tenho tempo. Mas o João Gilberto eu segui. Eu era um dos discípulos dele a fazer o xarope, a garapa da bossa nova. O João Gilberto, para mim, basta. Tudo o que veio depois, na bossa, já estava ali, no João Gilberto. É assim como Marley. Quando quero ouvir reggae, ouço os discos do Marley.
O que acha dos grupos de reggae brasileiros?
O reggae é um dos filhos adotivos do Brasil. Tornou-se um gênero no país. Ouço o Cidade Negra, o Skank, o Edson Gomes, que eu adoro. O Edson é ortodoxo e, ao mesmo tempo, faz canções muito originais. A Bahia, o Maranhão, Santa Catarina e Paraná fizeram do reggae um estilo. Lá, as senhoras quarentonas gostam de dançar nas festas, dançam com os filhos. Esses grupos de reggae têm pouca relação com o reggae que faço, um reggae gilbertigiliano, com meu violão.
Como foram suas participações recentes nos discos do Só Pra Contrariar e do Cidade Negra?
Com o SPC, o Alexandre Pires me chamou para cantar o “Mineirinho”, que ele sabia que eu gostava. E o “Forró no Escuro” ele gostava. Disse que ouvia muito. Eu coloquei essas duas canções no meu show, o São João Vivo, por causa dele. Já com o Cidade Negra eu gravei “Extra”. Eles me chamaram para cantar essa canção. Eles acham que a música tem um papel fundamental no reggae nacional. Tem um compasso não muito convencional para a música popular. Eu fui lá e cantei. Pronto. É uma faixa bonita. É uma reprodução fiel, reverente, com o mesmo arranjo original.
E como será o show, agora que o disco está pronto?
Estou preparando. Vai ter 12 músicas do disco e outras dez, como “Extra”, “Barracos”, “Alagados”, e umas representantes da minha safra de reggae. “Garota de Ipanema” estará no show. Eu peguei um samba bossa nova e acrescentei elementos do reggae.
O que acha de sua música, o “Sítio do Picapau Amarelo”, continuar fazendo sucesso com as crianças? Pensa no que passa pela cabeça delas quando o vêem como o “tio” que canta a música?
Na minha cabeça de adulto, isso não funciona. Quero saber como os moleques pensam. Quando estive em Catanduva [interior de São Paulo], uma mãe levou as filhas para me conhecerem, por causa do “Sítio” e de “Esperando na Janela”. Eu incluí no novo show por causa disso. Eu gravei também no Acústico. Foi pedido do flautista. O programa infantil teve três versões. A primeira foi com a minha música. Nas outras duas, tentaram tirar, mas não teve jeito. E a música não é simples, tem uma harmonia esquisita. Não é banal. Os músicos gostam. E se eu tiver de cantar matinê para os moleques, eu vou fazer para eles.
Você gostaria de refazer, regravar alguma música sua?
Claro que gostaria. Estou muito melhor, mas penso naquele frescor que das músicas à época em que foram feitas. Isso não poderá ser refeito. Regravar até passa pela minha cabeça, mas não para se tornar um projeto. Gosto delas como estão, fizeram parte do melhor da minha história. Queria regravar “Palco”. Adoraria. Eu gravei no Acústico, mas falo de gravar em estúdio, com cuidado, refazer a canção. Agora, a Warner está preparando uma caixa com sobras de estúdio. Serão 28 discos, toda minha coleção, mais alguns discos, como o Sol de Oslo, os discos que fiz lá na Bahia, e o Nightingale [disco raro de Gil que só é encontrado pirateado ou na Califórnia]. Isso me deixa muito contente. Será mais completa que a primeira caixa, lançada pela Universal.
Mais Gilberto Gil
Site Oficial: Um dos primeiros entusiastas da internet entre a classe artística no Brasil, Gil já tratou de disponibilizar em seu site oficial, o www.gilbertogil.com.br, todas as informações sobre o novo disco. Quem for assinante do provedor AOL poderá, inclusive, ouvir todas as faixas.