Entrevista com o soulman Hyldon
Aos 50 anos (completados em 2001), o soulman Hyldon reencontra-se com seu passado no disco “Velhos camaradas II”, que a Universal lançou há pouco. O disco traz gravações suas, de Tim Maia e de Cassiano – entre elas várias inéditas, faixas de compactos, remixagens e músicas retrabalhadas em estúdio. Hyldon revisita canções que dizem respeito à sua amizade com Tim Maia e Cassiano e realiza o velho sonho de juntar o núcleo-base do soul nacional em disco – ainda que a ausência de Tim seja algo a se lamentar. No entanto, como o próprio Hyldon diz, Tim estava lá espiritualmente.
Na entrevista que você vai ler a seguir, Hyldon faz revelações surpreendentes (algumas delas verdadeiras surpresas até mesmo para seus fãs e os fãs dos camaradas Tim e Cassiano), conta um pouco da sua história e, por tabela, da história do soul brasileiro, além de falar de suas atuais empreitadas. E vale a pena lembrar: Hyldon, um homem que já ajudou o Kid Abelha a ganhar disco de platina (com a regravação de “Na rua, na chuva, na fazenda”, em 1997) e deu ao Jota Quest um de seus primeiros hits (“As dores do mundo”), está cheio de músicas novas, inéditas, esperando para serem gravadas. Vale a pena remexer o baú do cara!
MúsicaNews: Hyldon, fala um pouco do que é esse seu disco novo, o “Velhos Camaradas II”
Hyldon: Tem o “Velhos camaradas I”, que foi tipo uma compilação (feita pela antiga PolyGram nos anos 80 com o nome “Os grandes sucessos de Tim Maia, Cassiano e Hyldon” e relançada em 1993 em CD com o nome “Velhos camaradas”). É um disco que tem as músicas mais fortes minhas, do Cassiano e do Tim também – “As dores do Mundo”,” Na sombra de uma árvore , ” A Lua e Eu “, “A lua e eu”,Coleção “Primavera”, “Azul da cor do mar” e tal. E o nome “Velhos camaradas”, inclusive, foi tirado de uma música que gravei com o Tim e com o Fábio na Odeon, chamada “Velhos camaradas”, que não tem nada a ver com essa história… “Camarada” é uma gíria muito usada na Tijuca, bairro do Rio. “Qualé, meu camarada”. E nós usávamos essa expressão, “fala, meu camarada!”. Além de tudo, o Tim era ali da Tijuca, era um bairro que a gente freqüentava. Como eu, o Tim e o Cassiano passamos mais ou menos na mesma época pela Universal, alguém teve a idéia de juntar, e foi muito feliz, porque só tem sucessos, só tem hit. Eu acho que foi o João Augusto (que na época fazia projetos especiais na Universal e hoje dirige o selo Deck Disc) quem bolou essa montagem e batizou de “Velhos Camaradas”.
Você tocou em discos antigos do Tim Maia, não foi?
Toquei, não só em disco, mas também em shows. Fiz parte da banda que o acompanhava, tocando contrabaixo. Quando o Tim faleceu, uns três anos atrás, eu fiquei muito frustrado, pois sempre falamos muito em fazer um disco – eu, ele e Cassiano. A gente chegou até a iniciar uma negociação com a Som Livre, com o Heleno de Oliveira, pra fazer por lá – mas sempre tinha algum problema, e o projeto não ia adiante. E tinha que ser um trabalho com um astral muito legal, porque a idéia era fazer as músicas em estúdio e trabalhar os três. Compondo, tocando e cantando. Pretendíamos chamar o Robson Jorge – que era o nosso quarto mosqueteiro – e pessoas que estavam mais ligadas ao nosso som. O Tim e o Cassiano são duas pessoas que mudaram muito a minha vida a nível de música. O Tim eu conheci depois do Cassiano, ouvi falar muito dele através dos Diagonais. Os dois são as pessoas com as quais eu mais tive afinidade, ao tocar. O Tim talvez é o parceiro com o qual eu tenho mais músicas, já que normalmente componho sozinho
Então você não fez parte dos Diagonais?
Eu não tocava nos Diagonais, eu fiz show com eles. Cheguei até a participar de um disco como músico.
Tem umas fontes na internet que colocam você como membro oficial da banda.
Não, não, nunca fui integrante. Eu comecei a trabalhar muito cedo em estúdio de gravação, como compositor e como músico também. Então os Diagonais participavam de gravações em que eu tocava. Em músicas minhas gravadas por outros intérpretes, eu cheguei a participar de um disco deles como guitarrista. Essa viagem que nós fizemos, na qual fomos até à Bahia foi muito importante pra mim, porque me aproximou muito do Cassiano. A gente viajou naquela de fazer show no interior, divulgar um disco que os Diagonais estavam fazendo… E eu participava do show cantando duas músicas minhas: “Eu me enganei”, que tinha sido gravada pelo Robert Livi e outra, “Chove (a natureza chora)”, gravada pelo Wanderley Cardoso. Coincidentemente, os Diagonais fizeram vocal nas duas gravações. Essa música, “Chove (a natureza chora)”, inclusive inspirou o Cassiano a fazer o “Primavera”, as letras até são parecidas. No início eu tive muita ligação com o pessoal da jovem guarda, meu primo tocava nos Fevers. Então eu vi os primeiros passos do rock. Comecei com uma ligação com a jovem guarda muito grande, meu primo me deu a primeira guitarra, eu formei um conjunto com a ajuda dele, eu tinha 14 anos.
Você citou artistas ligados à jovem guarda. Qual sua ligação com o movimento?
O Pedrinho, guitarrista e fundador dos Fevers, era meu primo. Naquele tempo era muito difícil e caro comprar uma guitarra americana, e o pessoal que iniciou o rock por aqui fazia suas próprias guitarras. A primeira guitarra do meu primo foi feita com o braço do meu violão. Quando os Fevers começaram a aparecer mais, eles ganhavam instrumentos da Giannini, e o que meu primo não usava mais, me dava. Foi ele que deu minha primeira guitarra. Assim, pude aos 14 anos formar minha primeira banda, Os Abelhas.
Como era esse conjunto?
A gente fazia bailes, o repertório era a música que meu primo me passava: Beatles, Rolling Stones, Jovem Guarda, samba – Ed Lincoln, Jorge Ben – tudo que tocava no rádio. Tocamos em festivais e o grupo chegou a se apresentar num programa da TV Rio, “A Festa do Bolinha”, apresentado pelo Jair de Taumaturgo. Na época, os Fevers , junto com Renato e seus Blue Caps eram muito requisitados para gravações. Quase todos os artistas gravavam com eles, as gravações aconteciam no eixo Rio-São Paulo . Depois mudou, vieram outros grupos, mas (os Fevers) eram um grupo super-respeitado. Gravavam com o Jorge Bem, Roberto Carlos, Wilson Simonal etc… Nessa época minha família voltou pra Bahia e eu, como só tinha 16 anos de idade, fui morar com meu primo e o acompanhava em todos os lugares que Os Fevers iam tocar: gravações, programas de televisão, bailes, “Jovem Guarda” na TV em São Paulo… Um dia o Almir, que era o guitarrista-base dos Fevers, faltou à gravação e eu o substituí. A partir daquele dia, passei a ser uma espécie de reserva do conjunto. Ao mesmo tempo dava minhas músicas para as pessoas gravarem. Até que eu conheci o Cassiano, cara… foi em 1970, mais ou menos, e eu comecei a perceber a música de um outro jeito, com umas coisas mais rebuscadas, como a parte vocal, essas harmonizações que não tinham na jovem guarda… foi muita informação musical para a minha cabeça. Outra pessoa que foi muito importante na minha formação musical foi o Cesar Camargo Mariano. Eu tive o prazer de participar da gravação de um LP do Wilson Simonal com ele e o grupo dele, o Som Três, que era o Cesar, o Toninho e o Sabá. Quase na mesma época eu viajei com o Cassiano e os Diagonais. Eles me convidaram pra viajar com eles pra ficar rico.
Ficar rico?
É, “vamos ficar ricos”, mas não ficamos ricos, nada (risos). Eles queriam ir pra Brasília, mas eu espertamente mudei o destino para a Bahia, porque se desse alguma coisa errada tinha minha família lá para dar apoio.
Naquela época, se ganhava dinheiro com direito autoral?
Não. Hoje a arrecadação através do Ecad está mais perto da realidade ,do que naquela época. Ainda longe do que deveria ser, a música gera muito dinheiro, graças a Deus o cinema nacional vem crescendo e abrindo mais espaços para a classe. Aos 16 anos eu ganhei o meu primeiro dinheiro com direito autoral, meu primo Pedrinho teve que assinar o contrato por eu ser menor de idade. A música foi “Eu me Enganei”, gravada por Robert Livi. A música entrou numa coletânea da CBS chamada as “14 mais”,e vendeu milhares de discos – quando meti a mão no dinheiro comprei logo um carro, porque eu era apaixonado por uma menina em Juiz de Fora (cidade mineira situada a algumas horas do Rio de Janeiro), a Gioconda (que ele cita na letra de “Táxi pra Bahia”, do disco novo). Aprendi a dirigir nessa estrada aí, saindo da estrada… (risos) era cheia de curva na época, não era essa estrada nova. Enfim , voltando à viagem, viajamos… eu passei 4 meses com eles e nós montamos um show, no qual tinham algumas músicas do Tim Maia. Ah! Foi conosco na viagem o cantor Maurício Reis, ele cantava músicas de Carlos Alberto, Altemar Dutra, Vicente Celestino, Nelson Gonçalves. Eramos cinco pessoas, bagagem, violão, eu não sei como aquele fusquinha agüentou. Na estrada o que mais eu ouvia era histórias sobre o Tim Cachorro (como Tim Maia era conhecido), todos morriam de rir e mais tarde eu ouviria falar muito sobre Sebastião Rodrigues Maia, Tim Maia.
E na época ele já devia estar fazendo sucesso.
O Tim não, ele tinha gravado um soul, que era o “Não vou ficar”, com o Roberto Carlos (regravado por Bebeto e Kid Abelha), que estava saindo… e ele estava prestes a gravar o compacto com “Primavera”, música do Cassiano. E nesse show a gente cantava essas músicas, cantava o “Primavera”. A gente fazia uma brincadeira, que era um cara tipo o Genival Lacerda… existia um cara antigamente chamado Coronel Ludugério. Ele se apresentava vestido de coronel, e a gente tinha o Camarão, que era o irmão do Cassiano, que imitava ele cantando o “Coroné Antônio Bento” (um dos primeiros sucessos de Tim Maia). Aí viajamos, eu acompanhei o processo dos trabalhos de vocalização, porque o Diagonais viviam ensaiando. Fomos para Salvador, fizemos muitos shows e… eu aprendi muita coisa com o Cassiano, principalmente na parte de harmonização, de cuidado de música, de levada, de vocalização, porque o Cassiano é muito bom de vocal. Quando nós chegamos de viagem, o Tim estava começando a escolher o repertório pra gravar o LP, estava saindo o compacto dele, “Primavera”, que estava começando a estourar. O Tim então pegou algumas dessas músicas e incluiu no disco dele, inclusive o “Coroné Antônio Bento”. E até, uma curiosidade: quem canta a segunda parte do “Coroné Antônio Bento” no disco do Tim é o Camarão (um dos membros do Diagonais, irmão do Cassiano). Não é o Tim que canta (a parte começa com “todo mundo que mora por ali/naquele dia não pôde resistir…”).
Acho que a maioria dos fâs do Tim nem desconfia que aquela voz não é dele…
É (risos). Se você reparar bem… (canta: “todo mundo que mora…”), aquela voz é do Camarão.
E não foi creditado, porque na época não se creditava essas coisas.
É, o Tim também é malandro pra caramba, ele não falou nada não… Mas no show ele cantava, o Camarão cantava. Teve um show de lançamento no Teatro da Praia… Nem posso falar isso do Tim, porque ele sempre deu crédito, é um dos poucos que se preocupa muito com isso. Nos discos dele você vê que tem todas as informações. Essa música aí ele comeu mosca, mesmo, ou quis enganar que era ele quem estava cantando.
Aí só perguntando pro Camarão o que rolou…
Pouca gente sabe dessa história. Bom, no primeiro disco do Tim, os Diagonais gravaram de vocal. Teve mais músicas como “Eu amo você”, “Você fingiu” (que também são do Cassiano). Essa última os Diagonais tinham gravado num disco que saiu pela CBS (atual Sony), só que o andamento era mais rápido. O Tim gravou ela bem blues, bem lenta. Bom, depois eu conheci o Tim. O Camarão me levou até ele para que eu mostrasse umas músicas, para ver se ele se interessava em gravar. Ele estava terminando seu primeiro disco. E eu fui encontrar com ele na Philips (hoje Universal), que ainda era na Rio Branco. Ele estava esperando a hora de gravar, a Elis estava gravando e ele gravar um dueto com ela na música “These are the songs” (que é do Tim Maia). Foi ali que a gente se conheceu e eu fiquei maluco quando vi ele tocar. Quando ele abriu a voz… ele pega o violão e a maneira de tocar, sabe? O jeito de tocar… eu aprendi muito com o Tim o negócio da levada, de como você organizar a base da música, do baixo, da batera, aquela maneira de tocar que eu peguei muito com ele, de você fazer a condução do baixo, do violão…
Ele já tinha uma coisa bem de soul americano mesmo…
É, ele tinha vindo de lá, dos EUA, né, cara? Eu já gostava de soul antes de conhecer o Cassiano, já tinha inclusive gravado uma música, um soul com a Rosa Maria na Odeon que não fez sucesso, “Tentei lhe esquecer”, bem soulzão mesmo. Aí quando eu vi o Tim, vi o Harlem se materializar na minha frente. Mostrei uma música pra ele… eu tinha uma música chamada “Gioconda”, que eu mostrei pra ele, um blues, e ele disse “pô, cara, essa música é muito boa, mas com esse nome não dá. Gioconda? Quem é que vai comprar isso? Tem que botar Cristina, Regina, mas Gioconda, não”. Aí eu disse, “ah não, também não vou trocar o nome da música”. Essa canção acabou sendo gravada pelo Jerry Adriani, produzido pelo Raul Seixas. E nós, eu e o Tim, tivemos uma relação legal, de troca, foi muito atencioso comigo, e eu fiquei com aquela imagem dele, cantando “Jurema”, soltando a voz na salinha de audição, chegava a tremer tudo. E dali, ele ficou lá, pra gravar, gravou a participação dele com a Elis e tal… e logo depois o Tim me chamou pra tocar com ele e começamos a compor juntos. Tinha uns lugares nos quais a gente se encontrava na zona Sul do Rio, que eram o Vagão e o Solar da Fossa, onde hoje é o Shopping Rio Sul, e onde morava um monte de artistas. Era assim tipo um hotel barato, que você tinha uns quartinhos, devia ter sido um convento, alguma coisa assim. Então tinham mais de 300, 400 quartos e só moravam artistas, jornalistas, bailarinos, tudo o que você possa imaginar do meio artístico morava ali.
Paulinho da Viola morava ali também…
É, Paulo Diniz morou lá, Adelzon Alves, Darlene Glória, Caetano, Gil, todo mundo passou por esse Solar.
Você tinha contato com o pessoal do Tropicalismo?
Cara, eu nunca tive muito contato com eles, não… o Tropicalismo foi um pouquinho antes. Nessa época eles já estavam indo embora. O uníco contato que eu tive assim mais estreito com eles nessa época foi com Caetano em 1976 quando compusemos uma música chamada “Primeira Pessoa do Singular” – inclusive ela está em “Velhos Camaradas 2″ com um novo arranjo e uma participação especial de Paulinho Trumpete… espero que Caetano goste. O Tim até teve (mais contato), porque ele andou visitando o Caetano lá em Londres… Eu fui convidado para dirigir um show da Wanderléia, foi em 1972, nós fizemos o show lá e eu levei o pessoal do Azymuth pra fazer junto, a gente fez no Tereza Rachel, foi uma temporada muito boa. E a Gal Costa me convidou pra trabalhar com ela na época, como guitarrista. Eu acabei declinando porque eu fiquei cinco anos preparando meu disco, então já estava na reta final de querer gravar, e acabei… Até me arrependo, porque teria sido uma experiência legal trabalhar com ela. Foi uma coisa da qual me arrependo hoje em dia de não ter ido trabalhar, mas fiquei lisonjeado de ter recebido um convite dela. Ela foi lá assistir o show e tal… Aí voltando ao assunto do Tim, a gente começou a se cruzar porque o grupo se encontrava em vários lugares. Tinha o Vagão, que era uma casa noturna onde a gente se encontrava. O violão rolava de mão em mão, e o público que freqüentava conhecia nossas músicas de cor, mesmo as inéditas. A gente tocava essas músicas do Tim, do Luiz Wagner Lopes, do Paulo Diniz, cantava as minhas músicas. A gente estava sempre se encontrando, trocando informação, fazendo som. Nessa época eu fui tocar com o Tony Tornado, logo depois que ele ganhou um festival com a música “BR-3″, de Antônio Adolfo e Tibério Gaspar. Eu tinha o maior prazer de tocar com ele, toquei por exemplo em músicas como “Não quero dinheiro”, “Sossego” – nessa música eu fiz a guitarra. Num disco dele na Odeon, fizemos uma música chamada “Booggie Esperto”, no “Tim Maia Disco Club”, fizemos outra música chamada “A fim de voltar”.
Como foi mexer nas gravações antigas do Tim para esse disco novo?
Eu fiquei muito à vontade em fazê-lo porque eu participei de praticamente todas essas gravações originais, e mesmo assim foi difícil, porque eu gostaria muito de ter a presença dele conosco. Mas eu sentia que ele estava presente, espiritualmente. O que eu tentei fazer foi pegar as músicas que mostravam mais a nossa interação. Aí tem músicas do Cassiano que o Tim gravou, música minha que o Tim gravou, tipo “I don´t know what to do with myself”, do segundo disco. Eu refiz algumas coisas, porque tem faixas gravadas em quatro canais. Então não dava, eu nem queria mexer, queria preservar o original, mas como se gravava com muito instrumento num canal só, não dava para você melhorar o som. Então o que eu fiz? Eu montei uma banda, de pessoas que tinham tocado conosco, como o Mamão e o Alexandre (do Azymuth), o João Castilho, Paulinho Trumpete,Tutuca e o Chacal que participou de tudo… Inclusive quando a gente fez essa música, “I dont know what to do with myself”, o Chacal morava comigo, a gente morava ali na Figueiredo de Magalhães. O Tim foi lá visitar a gente, estava apaixonadão pela Janete, uma menina de quem ele gostou muito. Aí ele começou a cantar, eu comecei a puxar uma harmonia no violão, e a gente começou a fazer essa primeira parte do “I don´t know…”. Isso foi uma dez horas da noite, Copacabana, mil novecentos e setenta e pouco, o Tim com aquele vozeirão. Aí o Chacal armou as congas, bongô, armou tudo no apartamento, até timbales, pratos. Nós ficamos cantando… e o Tim cantando e chorando, cantando e chorando, “I don´t know what…”. A festa foi até ás madrugas, violão, tumbadora, conga, percussão toda, o Tim uivando de tristeza (risos). Resultado: fomos despejados de manhã cedo daquele apartamento.
Depois daquela cantoria toda…
É (risos)… com polícia, com tudo. Ele gravou a música no disco e depois eu fiz a segunda parte em português. Ele nem aprendeu direito a segunda parte, tanto é que no original quem canta são umas meninas, não é o Tim que canta. Se você pegar o disco em inglês que a Universal lançou agora, tem “I don´t know what to do with myself” ali.
Esse disco eu não conhecia. É novo, então?
É, foi muito mal lançado. Eles lançaram há uns três meses, só com música em inglês do Tim. Voltando para o disco, que era o que a gente estava falando, eu coloquei uma voz recente no “I don´t know”, dividi com ele. Porque a primeira voz estava muito ruim mesmo. Com estava refazendo tudo, foi a única coisa que eu mexi de voz com o Tim. gravei uma nova voz cantando a parte que eu fiz na música. Em outras… por exemplo, tem a música “Eu amo você”, eu peguei muito o lado compositor do Tim, porque ele sempre se diminuía com esses lances de compositor, de achar que não era um grande compositor. Ele fez muito sucesso com músicas dos outros – e compôs coisas lindas como “Não quero dinheiro” e “Chocolate”.
Isso é verdade. Nos anos 80 ele gravava muita música do Michael Sullivan…
É, aí ele já estava naquela do mercado, do money. Mas apesar disso, eu acho que o Michael Sullivan e o Paulo Massadas fizeram grandes canções como “Um dia de domingo”, que ele até gravou.
A impressão que dá… eu sempre leio muita coisa do Tim Maia e do Cassiano e você não é muito citado – uma coisa que eu já acho injusta – e me parece que o Tim Maia teve uma coisa que você e o Cassiano não fizeram que foi fazer um link com a chamada MPBzona, aquela coisa do Caetano e do Gil… Isso talvez tenha colocado ele muito na mídia, porque a gente sabe que nessas horas a amizade conta.
Mas eu acho que o Tim, independente de talento, de ser aquela coisa de intérprete também… eu e o Cassiano, a gente é mais compositor e arranjador, a gente se preocupa muito mais com isso, a gente só grava músicas nossas. E a gente canta porque quer cantar as nossas músicas. Eu nunca tive essa vontade de fazer sucesso, desesperado, de aparecer… Eu sempre me preocupei mais com produzir, fazer as músicas do que em divulgá-las. Aliás todas as coisas que consegui na minha vida foram espontâneas. É até interessante aquele negócio do filme “Quase famosos”, aquela coisa que você procura a mídia… Eu vi muito isso, eu vi muito artista passar por mim, trabalhei com uma porrada de gente, acompanhei muita coisa. vi muito artista se perder da arte. Então eu nunca tive esse desejo de ser o centro do universo, mas sim de fazer um trabalho que ficasse, que tivesse qualidade. Eu quando era moleque fui ver “Jovem Guarda”, Roberto Carlos, com 10, 11 anos ver saída de auditório, as “macacas”… e eu nunca pensei em passar por aquele processo, eu quis sempre fazer um trabalho legal de composição, fazer uma música nova. Quando você pensa assim, fica meio out, porque o mercado só pensa em retorno imediato. O Tim, com todas as loucuras dele, era muito mais esperto com a parte comercial do que eu e Cassiano, porque ele teve uma convivência lá nos EUA de cinco anos e lá é “money is money”. Você aprende a lidar com o dinheiro lá nos EUA, no dia-a-dia. A gente não, a gente sempre foi muito exigente com a parte artística, mas muito românticos na hora de lidar com dinheiro, fomos péssimos comerciantes. Infelizmente no Brasil – no Brasil e em qualquer lugar do mundo – você tem que fazer seu marketing pessoal. Isso independe de valor. Porque a gente está agora em “evidência”? Porque depois de 25 anos nego viu, “pô, os caras ainda estão aí, as músicas dos caras ainda tocam, agradam a gregos e troianos, esse caras devem ser especiais”, então passaram a nos respeitar mais, e com tanto sucessos nas regravações acabamos virando cult. Agora a gente é assim, cult. Quer dizer, valeu a pena a gente ser como a gente é.
De certa forma sim, tanto que tem as regravações do Kid Abelha, Jota Quest…
O Cassiano também tem, uma porrada. Então as pessoas falam “não é possível!”. O cara faz uma música chamada “Primavera” que trinta anos depois as pessoas todas adoram, atravessou gerações. Dá pra notar que aí tem alguma coisa além de uma musiquinha simples. Então eu acho que o risco que a gente correu, de não fazer concessões, valeu a pena… O Tim, com todas essas coisas, chegou uma hora que ele cedeu, você sabe disso. Aquela época dos baladões, em que ele parou de fazer tudo aquilo que ele pregava, aquela coisa das levadas, e caiu fundo nos baladões. Ele só não se perdeu porque tinha uma banda na mão, o show dele sempre foi ótimo.
Parece que o soul foi substituído pelo brega, de uma certa forma. Até o Fábio Jr. passou a gravar música com acento soul…
Ah, hoje em dia até N´Sync faz soul, faz funk. N´Sync, Backstreet Boys… Diluíram o negócio. Eu acho que o soul foi legal até 1977, 1978, por aí, cara. Depois daí virou outra coisa. Se bem que existe uma nova geração de R&B que eu gosto muito, como Maxwell, R.Kelly, Brandy, D´Angelo, Incognito…
O próprio Lincoln Olivetti, um dos papas do soul nacional, passou a ser banalizado.
O Lincoln… mas ele é um excelente músico. Hoje em dia nego fala até isso aí, né, cara?
Mas ele chegou a ser muito banalizado, fazia arranjo pra todo mundo…
Por grana, por grana. As pessoas sucumbem às tentações. Por isso que meus discos são muito espaçados, 4 ou 5 anos. Dessa vez eu estou me superando, estou há uns dez anos sem gravar.
Outro dia vi um disco seu, “Moniséré” (Leblon records, 1993).
É, mas aquilo nem foi um disco, aquilo foi uma montagem que a Leblon fez, nem era para existir aquele disco. Aí o cara lançou, lançou lá fora, não me pagam direito autoral nem nada… Nem considero aquilo como disco. O último disco que eu fiz foi em 1989, para a (gravadora independente) Esfinge. E porque que eu não faço? Eu tenho convites pra fazer, quem sabe sai esse ano.
Aqueles projetos especiais…
É, ou voce faz aqueles negócios, que nem o Lobão disse: ou você faz um disco ao vivo, daqueles “MTV”, ou entra numa “Casa dos artistas” dessas.
O Jorge Benjor fez um acústico agora.
É, eu estou curioso, porque acho o Jorge um excelente talento, é um dos melhores compositores, maravilhoso. E acho que não dão o devido valor para ele no Brasil. Eu acho que esse disco vai ser muito bom, para ele e para as pessoas, pra garotada conhecer mais o trabalho dele. Eu já tô na fila já, babando, porque vai sair bom. Tá até o Lincoln Olivetti lá, o Babulino (apelido de Benjor) tá com tudo.
Voltando ao novo disco, reparei que as músicas escolhidas não são sucessos. Porque a opção de fugir dos sucessos?
Quando eu gravei meu primeiro disco eu fiz 18 músicas, e só podia entrar 12, e ficaram 6 de fora. Eu queria pegar coisas inéditas minhas para pegar no disco, e também abordar estilos de músicas diferentes nossos, para ter umas variantes do nosso lado de criador. Tinha uma música chamada “Táxi pra Bahia” que o Tim chegou até a gravar para o segundo disco dele, mas acabou não saindo. O Tim gostava muito dessa música. E aí tem uma música, “Los Angeles”, que eu gosto muito, eu mexi um pouco nela… E tem outra música que já é do segundo disco (“Deus, a natureza e a música”, de 1976), “Primeira pessoa do singular”, que é minha e do Caetano Veloso. Do Tim tem também uma música chamada “Preciso ser amado”, que ele tinha gravado só com voz e violão e eu botei uma banda, com cordas, etc. Tinha uma música que uma moça que canta pra cacete que estava aqui, quem trouxe ela foi o Don Charles, que era parceiro do Cassiano – ele toca piano pra cacete, agora está morando nos EUA. E ela era vocalista do Stevie Wonder, o nome da fera era Sheila Wilkerson. Na época eu tava produzindo e tentei arrumar um jeito, eu, Carlinhos e Cassiano, de colocá-la na Polydor – e a gente não conseguiu, os caras não quiseram fazer. Eu a chamei para participar do meu disco, ela gravou três faixas comigo e uma delas foi “Palavras de amor ao vento”, em que executa uma performace de arrasar. As outras duas foram “Meu Patuá” e “Na rua, na chuva, na fazenda” .
Já ouvi falar que você lançou o compacto de “Na rua, na chuva, na fazenda” sem o presidente da gravadora saber. É verdade essa história?
Rapaz, se você for contar as histórias que acontecem no meio artístico ,vai parecer tragicomédias… o disco do Tim, você pega o jornal e vê pessoas dizendo “eu que botei o Tim Maia na Philips”. O Tim gravou “Primavera” lá em São Paulo e o disco dele ficou oito meses para sair.
Disseram que foi o Nelson Motta quem descobriu o disco e mandou a gravadora tratar com mais carinho.
Não, eles já tinham gostado do disco, o Tim tinha gravado em São Paulo… o Tim duro, desesperado para sair o disco, aqueles negócios de “primeiro disco”. Aí o Tim veio de São Paulo pra cá e chegou aqui, o disco não saía, não saía… o Tim ficou até hospedado na casa do Fábio, nosso “velho camarada” lá. Aí um dia ele desesperado, duro, invadiu a sala do André Midani, deu uma tremenda porrada na mesa, gritou, falou tudo que tinha que falar… só assim o André Midani, meio que intimado, liberou o disco para ser lançado. Quanto ao meu, vou te contar como é que foi: hoje em dia nego fala, “André Midani, um dos maiores conhecedores de disco da América Latina”, porque “lançou” Elis Regina e um monte de artistas, ele fala pra cacete, né? Lançou Tim Maia, não sei mais quê… Meu irmão, o meu disco, quando eu senti que era difícil pra caramba gravar na gravadora – porque eu tava ali, gravava como músico, tinha um monte de gente que já tinha gravado músicas minhas, tinha dado música pra muita gente… Eu pensei: o único jeito de gravar vai ser entrar dentro do esquema da gravadora. Aí fui produzir, procurei o Mazolla, falei “tô a fim de produzir” e comecei a ajudar o Mazolla nas produções. Na Polydor tinha o Guti Carvalho, que hoje é produtor também, ele teve um acidente e quebrou a perna. Ele fazia parte da Polydor…
Que era o selo dos artistas mais populares da Philips, né?
É. Eu virei pro Jairo Pires, que era o diretor e falei: “Jairo, tô preparando meu disco”. Eu já tava há uns três anos em casa, trancafiado, lendo, estudando, pra fazer meu primeiro disco. Eu já tinha experiência, já vivia em estúdio desde os 16 anos, e falei: “eu posso te dar uma ajuda no estúdio, nas produções, enquanto o Guti se recupera e você deixa eu gravar o meu disco”. Aí ele topou fazer aquilo. Eu comecei a produzir muita coisa lá, discos sem nomes, como “Som Bateau”, “Banda do Canecão”, “Os Caretas”, “100 anos de samba”, “100 anos de carnaval”. No final do ano sabe o que aconteceu? Em dez discos da companhia, eu tinha quatro entre os mais vendidos. Ao mesmo tempo, eu participava das produções, Odair José, Dianna, Erasmo Carlos, todo o cast da Polydor. A maioria das gravações era feita com os Fevers, com o pessoal mais popular. Eu comecei a botar o Azymuth pra tocar no disco da Wanderléia, do Odair José…
Odair José, é?
“Pare de tomar a pílula” sou eu tocando o violão e o Azymuth (risos)… O pessoal do Azymuth vai me matar…
Eu ia morrer sem saber dessa.
Mas melhorou o nível, que era aquele chacundum. Num dia faltou um cara, acho que o Odair José perdeu o trem, eu tava na gravação como produtor, peguei o violão e falei: “galera, o negócio é o segunte, hoje nós vamos gravar o meu, o cara perdeu o trem”. Aí gravei o “Na rua, na chuva, na fazenda”. Fiz uma fita, mandei pro André. As gravadoras tinham cordas contratadas. Eu já fiz os arranjos com o Waldyr Arouca, que era o cara que trabalhava com o Tim, com a gente. Falei, “Waldyr, vamos gravar”, e às quintas-feiras tinha cordas grátis, os caras iam lá mesmo se não tivesse gravação. As gravadoras tinham um naipe de cordas do Municipal, produção em massa. Botei as cordas de “Na rua, na chuva, na fazenda”, o Jairo Pires apresentou pro André e ele ficou maravilhado, disse que era uma das melhores coisas que ele já tinha escutado nos últimos 10 anos, mandou dar parabéns, eu fiquei todo contente, o disco ia sair… Aí uma semana depois ele escreveu um recado pro Jairo dizendo que queria que eu gravasse um trabalho “fifty-fifty” com versões, e pra começar queria que eu gravasse o “Angel”, dos Stones, que inclusive ele achava minha voz muito parecida com a do Mick Jagger. Agora tu vê que monte de besteira, né?
Caramba…
Cara, eu fiquei pra morrer. Eu só não enfiei a porrada nele porque os caras me seguraram, me levaram pra fora da companhia. Soube disso na sala da Polydor. Aí conversaram comigo, tal tal tal… Resultado: o meu disco ficou quase um ano (pra sair) e eu não parei de produzir, porque era a maneira que eu tinha de pressionar os caras. E cada vez eu produzia melhor e mais objetivamente, em relação a vendas também. Fazia em uma semana três, quatro discos. Aí quando chegou no final do ano, de dez eu já tinha seis dos mais vendidos, num cast de 140 artistas. Cheguei pro Heleno de Oliveira e pro Jairo e eles “pelo amor de Deus, não pára de produzir, nós vamos dar um jeito”. Cara, meu disco foi quatro vezes pra fábrica e voltou com um bilhetinho do André, dizendo “este disco está proibido de sair”.
Mas porque isso?
Porque o Jairo Pires, diretor na época, sabia que eu era o melhor produtor e dava um jeito de soltar meu compacto. Ele e o Heleno de Oliveira tramavam isso, mas o André Midani descobria e voltava dizendo que eu tinha que gravar o lance das versões, cara. Ficou de birra comigo. Até que chegou um dia em que, para não me perder como produtor eles resolveram liberar o disco. E na época eu estava fazendo “100 anos de samba”, 4 ou 5 discos com a história do samba e do carnaval. E os caras resolveram me liberar pra fazer. “Ah, libera aí, não vai acontecer p* nenhuma mesmo”. Meu irmão, com 15 dias, “Na rua, na chuva, na fazenda” já tava tocando na JB, na Mundial e na Globo, direto.
Mas não tinha jabá, não?
Tinha, mas não era tanto. Na época os caras gostavam de descobrir músicas. O primeiro a tocar minha música foi o (falecido radialista) Big Boy. Comecei a tocar na JB, que era até uma rádio elitizada. E eu tive um boicote da empresa, a nível de… “foi cagada de iniciante”, eles diziam. Aí eles queriam um outro compacto. Eu falei pro Jairo: “eu dou mais um compacto, mas eu quero gravar um LP. Aí vocês escolhem qual música vai entrar, e qual que não vai”. Eu já saí gravando um LP, por isso que eu gravei 18 músicas. Aí tiraram mais um compacto, com “As dores do mundo” e estourou de novo.
Já não podia ser mais só cagada.
Quando saiu o disco eu era moleque, 20 e poucos anos… aí eu fiquei tão revoltado, tão p*, que quando saiu o LP mesmo – que demorou, porque saiu o compacto, outro compacto, depois ainda soltaram o compacto duplo… meu compacto duplo ficou mais de cinco anos na parada entre os 10 mais vendidos pelo NOPEM (uma parada de sucessos da época). Eram quatro músicas, “Na rua, na chuva…”, “As dores do mundo”, “Na sombra de uma árvore” e “Sábado e domingo”.
Que são as quatro que eles botaram no primeiro “Velhos camaradas”.
É, e ainda botaram uma do primeiro disco que também tocou, “Acontecimentos”. Mas esse disco e o “Dio come ti amo” da Gigliolla Cinquetti ficaram anos na NOPEM. Se fizer uma pesquisa com o NOPEM daquela época, de compacto duplo, você vai ver que ficou um tempão mesmo. Aí quando saiu o LP, eu já tava revoltadaço com a gravadora… eu não tava preparado pra lidar com a coisa, a estrutura de guerrear com uma multinacional. Era muito inocente. Na época eu não tinha nem foto de divulgação na gravadora. A primeira vez que eu fui numa rádio, na rádio Globo, meu compacto era o segundo lugar em compacto no Brasil inteiro. Eu já estava estourado e aí é que eu fui à rádio. Isso tudo na época bateu totalmente diferente pra mim, na de achar que “entrei em guerra com os caras”. Aí na hora de fazer um segundo disco, fiz um disco p*, pra não tocar no rádio e fui embora para o EUA.
Qual seu grilo com esse “Deus, a natureza e a música” (o tal segundo disco)?
Eu tenho dois grilos. O primeiro: quando a gravadora era na Rio Branco, o estúdio de oito canais era maravilhoso, onde foram gravados esses discos nossos todos, quase. Elis Regina gravou lá, o Tutti Frutti da Rita Lee foi gravado lá, era um estúdio, era maravilhoso. Quando mudou pra Barra, teve problemas de construção de estúdio… um monte de problemas. O estúdio foi construído em lugar errado, com equalização errada… Tanto é que o estúdio até acabou, porque nunca conseguiram acertar o som. Os primeiros discos gravados lá foram Gal Costa – o disco dela de 1976 -, Cassiano (“Cuban soul”, de 1976, recentemente reeeditado), Tim Maia e o “Deus, a natureza e a música”. Se você vê o som de bateria, cara, parece lata velha.
O do Cassiano tá melhorzinho, talvez porque ele tenha enchido o saco do pessoal.
As melhores músicas do Cassiano foram gravadas em São Paulo, não foram gravadas lá: “Coleção” e “A lua e eu”. Se você ouvir as outras… até botei uma delas aí (no disco novo), “Saia dessa fossa”. Aí a gente já mixou, agora ouve o original que você vai ver. Parece som de lata velha. Esse meu também. Outra coisa também: como eu estava com a cabeça muito ruim, desafirmado, revoltado, eu comecei a cantar nuns tons muito agudos. Como o estúdio estava péssimo, minha voz está com som de lata. Musicalmente, eu acho o disco do cacete, tem umas coisas experimentais. muito interessantes.
Tem uma mini-ópera…
Tinha, a “Sheila Guarany”, uma mini-ópera rock. Gravei metade com a Black Rio, metade com o Azymuth. A Black Rio fazia shows comigo, montamos show, viajamos… Tinha o reforço do Cristóvão Bastos, que era o tecladista. Inclusive tinha uma música do Edu Lobo e Torquato Netto (“Pra dizer adeus”), que o Cristóvão também fez o arranjo de cordas .. Eu agora estou negociando com a Universal pra não sair em CD do jeito que saiu em vinil com aquele som de lata velha.
Você não quer que saia em CD?
Não do jeito que está. Eu vou tentar salvá-lo, colocar a voz de novo em algumas faixas e remixar. Estou fechando um acordo com a Universal para que a gente relance esse disco ainda esse ano.
Esse disco é bem caro, eu já vi em loja aqui no Rio por cem reais. E olha que aqui no Rio quase não se dá valor a disco…
O nome é muito bonito, “Deus, a natureza e a música”. Ele teve pouca tiragem, acho que não vendeu nem cinco mil discos… Não botei nem foto na capa. Falei isso pro Silvio Essinger, (que recentemente entrevistou o Hyldon para o “Jornal do Brasil”): eu na época estava precisando era de um psiquiatra, pra me orientar, um contador e um advogado competente para negociar meus contratos. Estávamos lidando com grandes multinacionais. Teve isso também na minha vida: eu era muito sozinho, saí de casa cedo, morei com esse meu primo, depois fui morar sozinho. Não tinha aquele aconchego, minha família na Bahia… Então você fica muito vulnerável. Não tem pra quem pedir conselho, então acaba agindo impulsivamente. Imagina brigar… eu briguei com várias gravadoras.
Aqui no Brasil tem aquele negócio do “estar queimado com”…
É, e a gravadora nunca diz que foi ela que errou, né, cara? Sempre diz que o cara é maluco, idiota, doidão, tá viajando, tá metido, tá isso… sempre tem um adjetivo pra justificar seus próprios erros. Todo o meu problema com gravadora era esse: dificuldade de aceitar que você é um produto. Mesmo você sabendo que não é uma pasta de dente, é isso que você é pra empresa, um produto. Eu sou uma pessoa que gosta de observar as pessoas, não gosto de me promover. Tudo que sempre quis foi que as pessoas conhecessem a minha música e eu pudesse andar tranquilamente na rua, incógnito. E fora a estrutura que não tem no Brasil. Todo artista sonha com um empresário que chegue e fale: “Fica quietinho aqui,vou arranjar uma gravadora pra você, vou contratar uns músicos, alugar uma casa pra você ensaiar e você só vai se preocupar em cantar, compor e fazer show”. Pura ilusão. Aqui, no final você acaba fazendo tudo sozinho.Tem que bater o corner e correr pra área pra cabecear.
Se hoje já é complicado isso, imagina naquela época.
Não existia. Tinha por exemplo o Marcos Lázaro, que era empresário dos superstars, do Jorge Ben, Elis Regina, de quem tivesse estourado. Pegar um empresário pra quem está no primeiro lugar é muito fácil. Quero ver investimento em quem tem talento e está começando carreira. É por isso que a música que se ouve no rádio não retrata a realidade da música que existe no Brasil, que é a música que realmente deveria tocar no rádio. Você anda por aí, você vê que tem talento pra cacete, nos bares, nos shoppings e dá até pena de você ver tanto talento jogado fora. A gravadora cada vez tá limitando mais o número do seu cast. As pessoas me perguntam na rua: “pô, porquê que tu não grava mais? Quando é que vai sair o novo disco”. Parece que eu não quero gravar ou que desisti da carreira. O que acontece é que me restam duas soluções: ou eu gravo independente e ninguém fica sabendo de nada, ou eu faço um disco de revival. Parece que eu parei no tempo e não é isso. Estou no melhor da minha criatividade. Ainda bem que eu tenho meus projetos paralelos de produção e meus direitos autorais para segurar a onda. Se não eu estaria fazendo shows de voz e violão em churrascaria pra sobreviver.
Mas já pensou em fazer um lance tipo o do Lobão?
Cara, parabéns pro Lobão, mas em 100 (artistas) que fizeram isso, um deu certo: o Lobão. Mas a coisa tá mudando, tem a internet ,tem selos surgindo, tudo está acontecendo muito mais rápido. Piorar não vai.
Você tem que ter um certo carisma que ele tem, aquela coisa de “o brigão”, em imagem pública.
É, dá certo às vezes com um. Com os Titãs já não deu.
Mas também com o preço a que eles lançaram ns bancas…
É. As coisas estão mudando, mas ao mesmo tempo a crise, a pirataria, essas coisas todas… Hoje em dia, você vê que incoerência… Pega o “Jornal Hoje”, da TV Globo, de vez em quando eles apresentam um quadro com bandas novas. Tem ali altos grupos, altos músicos. Aqui em Teresópolis tem gente boa pra caramba. Parece piada, mas se você andar nas praias do Nordeste, você conta vários Djavans, muita gente talentosa se apresentando por aí. E a maioria você sabe que não vai ter oportunidade de chegar ao grande público. Ao mesmo tempo você escuta nas rádios, na TV, música ruim, pasteurizada, que segue modismo sem nenhum compromisso com a arte. “Agora o negócio é pagode, agora é axé”, aí queima pagode, queima axé. E volta sempre pro rock´n roll, né? É o funk carioca que não durou nem um ano. Não tô questionando nem nada de qualidade. Eu sou uma pessoa muito aberta com música, não tenho preconceito nenhum, pra cada coisa tem uma música: pra dançar, pra namorar pra relaxar, pra andar de elevador… Tem coisas no axé legais, samba de roda da Bahia… não gosto das letras, apelativas e tal, mas a cozinha é boa pra caramba. O que eu acho que é o grande erro do mercado é: porque não parte da arte e depois joga o marketing em cima? Eles invertem tudo, primeiro a idéia, depois o artista. Então, a mentira tem perna curta. Uma coisa muito importante: eu nunca deixei ninguém se meter nas minhas músicas. Tem que ser do jeito que eu acho, do jeito que eu penso. Nesse projeto, “Velhos camaradas 2″, tive inteira liberdade. Só fiquei preso ao que eu podia usar, tecnicamente. É por isso que eu resultado, a meu ver, ficou tão legal.
O que você achou desses relançamentos seus aí?
Achei super-legal. É um trabalho de recuperar a nossa memória musical, houve um hiato entre o vinil e o CD, que ele com muito bom gosto e determinação tem pescado nos acervos das gravadoras. O Charles Gavin fez dois relançamentos meus que achei do cacete. Um disco foi o da Sony, “Nossa história de amor”, de 1977, e o outro “Na rua, Na chuva, Na Fazenda(Casinha de sapê)” pela Universal, super bem masterizado, se preocupando com a ficha técnica… Este trabalho está sendo bom para os artistas e para o público, principalmente para a nova geração.
Eu gostei muito do disco. Mas a impressão que dá daquele disco… Não sei, eu sempre acho que a CBS trabalhava o artista para ele virar um “Roberto Carlos”, digamos assim.
Mas ali… quando eu saí da PolyGram eu estava totalmente apaixonado por uma menina, a Solange. Fiz o disco inteiro pra ela, mandava flores pra ela dizendo que era o Roberto Carlos, estava apaixonado por ela, de quatro total (risos). Aquilo tudo ali era da maior sinceridade possível. Eu já fiz matéria dizendo que eu não queria ser o Roberto Carlos de jeito nenhum. Admiro demais o Roberto, ele nasceu pra cantar pra multidões como Orlando Silva, Frank Sinatra. Mas esse nunca foi meu sonho. Não são meus valores, entendeu? Você pode pegar meus discos e vai ver que não tem uma música parecida com a outra, mesma levada. Eu nasci pra inventar, e se eu ficasse preso a certas coisas, a essas regras de se manter em evidência… eu seria um cara morto artísticamente. Até hoje continuo fazendo minhas coisas totalmente diferentes com o mesmo prazer de quando comecei. E o público tem saudade das músicas antigas, e chega a me pedir: “Você tem que fazer uma igualzinha a “Na rua, na chuva, na fazenda”, mas música, só existe uma só. Eu prefiro descobrir novas fórmulas, novas levadas, novas maneiras de falar… Mas voltando ao disco “Nossa História de Amor” não houve interferência nenhuma, nem do diretor, que era o Jairo Pires. Ele nem aparecia no estúdio. Eu gravei o que eu estava sentindo na época, eu estava realmente apaixonado. Meu erro foi ter gravado em tons muito altos, parecia que se eu gritasse, todo mundo ia me ouvir. Era o desespero de um homem apaixonado (risos)…
E esses projetos pra crianças?
Quando eu tô precisando ter uma alternativa pra não vender minha alma eu procuro trabalhar com alguma coisa que eu goste… e trabalhar com criança é um exercício de simplicidade. A idéia do “Meu primeiro CD” nem foi minha, foi da minha esposa, que é designer. A gente tinha que presentear um bebê recém nascido e resolvemos dar um CD. Minha esposa Zoé Ruth, parceira, que me deu duas filhas maravilhosas, foi às compras. Ela trouxe um CD, mas eu achei horrível, ela foi lá trocar e veio outro igualzinho. Eu falei: “vamos fazer um CD, mas atual, que o pai , a mãe possam cantar. Músicas pro bebê ano 2.000″. E eu bolei o lance das 24 horas do bebê. Eu usei algumas músicas que eu fiz pra minha filha, como a do cavalinho. E as outras eu passei 6 meses compondo.. É uma maneira de trabalhar diferente, como se fosse botar uma trilha sonora num filme . É uma outra maneira de compor, porque as músicas que eu gravo nos meus discos são músicas que eu nem sei porque é que eu fiz. São músicas que vêm, saem da cabeça, da alma, nem eu sei de onde, não é “vou fazer uma música assim, assim”. Às vezes pinta uns períodos que eu pego o violão e sai cubano, balada, soul. Esse tipo de trabalho do bebê foi diferente, só de ter recebido elogios do João Gordo numa crítica ,valeu a pena. O CD já está em quase 50.000 cópias. Outra experiência legal de trabalhar com crianças foi com o Lug de Paula, o Seu Boneco. Trabalhamos cinco anos juntos, fiz teatro infantil, shows, comerciais de tv, campanha de vacinação, trilhas para teatro, tive oportunidade de trabalhar em parceria com o Chico Anísio. Eu fiz o pagode do Seu Boneco e chamei Dicró, Bezerra, Almir Guineto e Zeca Pagodinho. Eles mesmos me deram os parabéns depois da canção pronta, “Hyldon, só você mesmo pra conseguir juntar a galera”. Regravamos “O Bom Menino” com Carequinha, palhaço que foi meu idolo de infância, gravamos quase 70 cantigas de roda em dois discos pra Som Livre, fiz com o maior amor. Só não deu mais certo porque o Lug sempre queria fazer coisa pra adulto e eu sempre achava que Seu Boneco era um personagem infantil. Tanto é que o Boneco hoje fala palavrão, faz coisa errada… eu achava que ele podia ser um tipo um Charlie Chaplin, falar pouco, passar mensagens. . Eu ainda fiz aquela música “Ê ô ê ô, o Boneco é o terror”. Acabei ganhando um presente: a torcida do Vasco foi quem espontaneamente começou a cantá-lo, eu sou Vasco desde criancinha (risos)…
Pô, pára com isso…
Quando já estava com a música pronta (canta: “aí eu vou pra galera…”) vi que estava faltando um refrão. Naquela noite fui dormir com aquilo na cabeça. Quando eu estava quase dormindo, veio o refrão , sonhei com a torcida no Maracanã cantando “ê ô ê ô, seu Boneco é o terror”. Eu acordei, anotei e mostrei pro Lug. Ele nunca tinha imaginado gravar um disco. Estava com os olhos brilhando quando levei a fita pra Som Livre, que fechou o projeto conosco. O refrão virou um grito de guerra e a música foi um sucesso no Carnaval. Tive uma experiência inesquecível, sair num trio elétrico cantando e tocando minha música pelas ruas de Salvador, minha cidade natal.
Você e o Lug já tinham contato antes de tudo, então?
A gente é amigo há mais de vinte anos. Sabe quando eu fiz esse disco? Quando o Collor meteu a mão no nosso dinheiro e acabou até com o direito autoral, eu com filho pequeno… Aí vendi a idéia do disco infantil pro Heleno, eu produzi, dirigi shows. Foi bom porque eu viajei pra caramba, às vezes até fazia alguma coisa nas cidades onde a gente estava fazendo show. O mais importante foi o contato que eu tive com o público, a gente viajava de Manaus a Porto Alegre, direto. O Boneco estouradão… e você não tem muitos shows infantis, tem só a Xuxa, Angélica, Eliana. A gente era muito solicitado. E me deu experiência nessa parte de administrar, ter uma firma, responsabilidade de viajar com equipe, crianças, foi muito legal. Há cinco anos resolvi mudar para uma cidade pequena, escolhi Teresópolis, a cidade das flores e dos pássaros, onde se respira um ar puro e as pessoas são menos estressadas. Estou dando uma infância para minhas filhas como eu tive, em contato com a natureza. Quanto a trabalho, só estou fazendo projetos especiais com minha produtora, tenho meu home studio e vou seguindo, cheio de música nova…
E as regravações das suas músicas, o que você achou?
Eu gosto de tudo, não critico nada. Já viu a versão do Christian e Ralf? É abertura da novela (do SBT, “Amor e ódio”). Acho que não falta mais ninguém pra gravar. Eu gosto deles, não tenho o mínimo preconceito, fico muito lisonjeado quando os caras gravam. Uns eu gosto mais. O Jota Quest por exemplo, mudou muito a música, mas eu gosto da gravação. O Kid Abelha conseguiu pegar um lance legal, ficou meio reggado, levantou a carreira deles legal. Hit total, Eles são pessoas finíssimas, gente maravilhosa, a Paula nunca canta a música sem citar o meu nome .
Falou, Hyldon, manda uma mensagem aí…
Quero só dizer pra essa galera procurar a gente, para gravar as minhas músicas novas. Eu e o Cassiano estamos cheios de músicas novas. Outro dia mesmo vi uma entrevista do João Marcelo Bôscoli (da Trama) e ele disse que sentia falta minha e do Cassiano na MTV. Mas ao mesmo tempo, ele como presidente da Trama nunca nos convidou para gravar lá. Mudando de assunto: eu recomendo o disco novo da banda Black Rio. Você já ouviu?
Ainda não, andei ouvindo uns antigos.
Então a última mensagem é: ouçam o disco novo da banda Black Rio, “Movimento”, com arranjos vocais do Cassiano, maravilhosos.
Ah! O novo do Luiz Melodia está também demais. Como diz a letra da primeira música do CD (“Retrato do artista enquanto coisa”), “Feeling da música” – que por acaso é minha, de Melodia e Ricardo Augusto: a música não pode parar!