Tudo Velho: Tratamento (quase) VIP para Raul Seixas
O rockeiro baiano Raul Seixas é um daqueles raros nomes que estão praticamente acima do bem e do mal, devido à idolatria que seu nome provoca. Tido como guru pelos seus fãs – em tempo: é raro achar também alguém que goste mais ou menos do trabalho do cara; geralmente todo fã de Raul é um fanático em potencial – Raul conseguiu ter um fã-clube fiel e numeroso mesmo na época em que estava mais desaparecido da mídia. Durante o período em que quase não aparecia na TV e gravava discos bem mais fracos, Raul teve a chance de se transformar num mito em vida, potencializado pela espera de notícias, gravações novas e shows – estes últimos, cada vez mais raros.
Com a caixa Maluco Beleza, recentemente lançada pela Universal (sob os auspícios de Kika Seixas, ex-esposa do cantor, e do fã-mor Sílvio Passos, autor do livro que acompanha a caixa) os fãs têm a chance de testemunhar a primeira vez que a obra de Raul recebe uma homenagem à altura. Quem comprou as primeiras edições em CD dos discos de Raul pela antiga Philips deve ter se decepcionado brutalmente: as letras vinham sem nenhuma revisão, não havia ficha técnica nem artística e o som muitas vezes assemelhava-se ao de uma fita mal-gravada. O disco Gita (1974), um dos mais emblemáticos de Raul, havia sido prensado nos EUA e mesmo assim ficava com um som ridículo. Desta vez, os melhores discos de Raul vêm com trabalho gráfico tirado direto das capas originais e com um som de arrepiar os cabelos. Foi feita uma remasterização decente (por Luigi Hoffer, técnico do antigo estúdio da Philips, que esteve por trás de muitos dos discos do cantor na época) e o som, ao invés de lembrar lata velha, chega a parecer com o dos antigos vinis.
Com Maluco Beleza, tanto fãs como estudiosos de música brasileira têm a chance de parar para pensar no que representa o mito Raul Seixas. Apesar de ter uma extensa discografia em gravadoras como Sony, WEA, Som Livre e Copacabana, são os primeiros discos de Raul na Philips e, por extensão, O dia em que a terra parou, seu primeiro na WEA (curiosidade: é desse disco a faixa “Maluco beleza”, que deu título à caixa e foi cedida a Universal para ser incluída como bônus), os cultuados pelos fãs de todas as idades. O poder de comunicação de Raul – e de Paulo Coelho – é uma coisa que ainda merece um estudo mais aprofundado, muito embora grandes explicações possam ser encontradas no célebre livro Raul Seixas: Uma antologia, de Sylvio Passos e Toninho Buda, lançado em 1992. Uma escutada distraída na caixa revela, de cara, que Raul realmente personificou o rock brasileiro, com identidade brasileira, numa época em que o rock era ainda tido como algo maldito pelas grandes gravadoras. Sua destreza como compositor e letrista, lapidada durante o período em que trabalhou como produtor da antiga CBS, e seu conhecimento dos bastidores do showbizz também contribuíram bastante para a preservação de sua obra. Mais que um presente para os fãs, a caixa é um motivo para até mesmo os não-convertidos transformarem-se em fãs da noite para o dia. Com habilidade assemelhada à da dupla Roberto e Erasmo, Raul conseguiu erigir uma obra profundamente rockeira, coesa, filosófica e existencial. E pop, porque ninguém é de ferro.
Acompanhado de uma série de grandes músicos (os mais constantes eram os guitarristas Gay Vaquer e Rick Ferreira, o baixista Paulo Cesar Barros e o baterista Ivan Conti, além do tecladista José Roberto Bertrami), Raul falou direto ao coração de seu grande público sob uma base que abarcava rock n roll, baladas, toadas, folk-rocks, countrys, ritmos brasileiros e até mesmo hard rock tosco e garageiro – embora pouca gente tenha prestado atenção nisso, Raul caminhou da variedade sonora de seu início de carreira em direção a uma sonoridade mais pesada, que desembocou no LP Novo aeon (1975), um suicídio comercial para quem estava acostumado com o som mais pop de Gita. O esquecido single “Um som para Laio”, lançado no fim de 1974 e incluído como bonus em Gita, já dava mostras disso, incluindo guitarras pesadas e barulhentas, bateria socada e ambientação sonora mesclando MC5 e Blue Cheer – bandas que Raul talvez nem conhecesse -, quase adiantando em vinte anos a porradaria grunge de Nirvana e Mudhoney. No lado B estava a suingada “Não pare na pista”, que poderia ter dado um grande sucesso a Raul, mas nem foi muito divulgada.
Além dos quatro principais discos de Raul na Philips, entraram na caixa dois antigos e pouco lembrados discos do cantor, que saíram pela mesma gravadora. 20 anos de rock, lançado em 1975, era a reedição de um LP que saíram em 1973 com o título Os 24 maiores sucessos da era do rock. No disco, Raul atuava como produtor e cantor (ao lado de um desconhecido que canta algumas faixas), sob o pseudônimo do grupo Rock Generation – a reedição de 1975, feita para aproveitar o sucesso de Raul, já trazia seu nome na capa. O repertório era só rock dos anos 50 e 60 e jovem guarda, com Raul acompanhado por uma banda pesada e ensandecida, que pegava antigos rocks e inseria altos solos de guitarra. Raul Rock Seixas, que saiu em 1977, era um disco que Raul tinha deixado gravado lá e foi lançado para cumprir contrato. O repertório traz igualmente rocks velhos, antigas baladas e um misto de “Blue moon of Kentucky” com “Asa Branca”, mas a sonoridade já é mais anos 50/60.
Problemas: uma olhada mais minuciosa na caixa revela detalhes um tanto quanto broxantes – continuam faltando informações importantes (apenas o encarte do disco Krig-Ha Bandolo, desenhado e escrito à mão pela então esposa de Paulo Coelho, Adalgisa Rios, foi reproduzido integralmente) e, verificando-se as bonus tracks, nota-se a ausência de uma série de sucessos de Raul que só saíram em singles, como “Teddy Boy, rock e brilhantina”, “Como vovó já dizia” e “Let me sing, let me sing”. Resta saber o que Kika vai fazer com essas músicas, só encontráveis em coletâneas esparsas (e inúteis para quem tem essa caixa em casa). Em compensação, aparece a rara versão de single de “Ouro de tolo” – na qual Raul, talvez impedido pela gravadora, substitui “Corcel 73″ por “carrão 73″ – e a nem tão rara “Loteria de babilônia”, na versão do festival/disco Phono 73 (é a mesma versão do disco Gita, só que maior, com outros vocais e sem o arranjo de metais feito por Erlon Chaves). O lado black de Raul aparece à toda na berrada e suingada “Caroço de manga”, incluída anteriormente numa antiga trilha sonora. Ainda assim, dá para dizer que os fâs de Raul nunca foram tão bem tratados.
DISCOS DA CAIXA:
KRIG-HA BANDOLO (1973): O primeiro disco de Raul misturava, rock, pop, humor e música de protesto. “Mosca na sopa” é o grito anti-ditadura mais engraçado surgido nos anos 70. Ainda tem a existencial “Metamorfose ambulante”, a psicodélica “A hora do trem passar”, a gozadora “Al Capone”, entre outras. Nota 10.
GITA (1974): Mergulhados na obra de Aleister Crowley, Raul e Paulo Coelho falam, sob uma base de rock norte-americano, em super-heróis brasileiros, discos-voadores, o bem e o mal de braços dados (na lírica “Trem das 7″) e lançam “a semente de uma Nova Idade” com “Sociedade alternativa”. Nota 9,5.
NOVO AEON (1975): Disco agressivamente rockeiro e pesado, que vendeu pouquíssimo e decepcionou a gravadora – mas era considerado por Raul como sendo seu melhor momento. Cantando um dia que havia de chegar, Raul fala de libertação feminina, masturbação, satanismo, amor livre (na machista e lírica “A maçã”) e se diz farto do rock n roll em “A verdade sobre a nostalgia”. Nota dez.
20 ANOS DE ROCK (1975): Só rocks antigos numa roupagem pesada, festiva e alegre (com ireito a acompanhamento de palmas). Destaque para as versões de músicas de Jovem Guarda – o Barão Vermelho copiou a versão de “Pode vir quente que eu estou fervendo” da de Raul. Nota oito.
HÁ DEZ MIL ANOS (1976): Disco irregular – mas redentor em termos de vendagem – no qual convivem o hard rock da faixa-título, o soul “Quando você crescer”, o tango (!) “Canto para minha morte”, a religiosa “Ave Maria da rua”, a country e satírica “Eu também vou reclamar” e a bisonha “Dia da saudade”. Nota sete.
RAUL ROCK SEIXAS (1977): Raul tinha deixado gravados vários rocks e blues antigos e, quando foi para a WEA, a Philips juntou todos num disco. Como destaques, a alegrinha “Just because” (dele e de Gay Vaquer) e “Blue moon of Kentucky”, antigo sucesso de Elvis, mesclada a “Asa Branca”. Nota dez.