Tudo Velho: Rock nacional, MPB e heavy carioca em livros
Se for verdade o velho clichê de que rockeiro não lê (será que alguém ainda acha isso?), três recentes lançamentos estão aí para desmentir tudo. A vida até parece uma festa, bio dos Titãs escrita pelos jornalistas Hérica Marmo e Luiz André Alzer (Record) e Dias de luta, livro-reportagem sobe o rock nacional dos anos 80, escrito pelo também jornalista Ricardo Alexandre (DBA) somam juntos quase 800 páginas. Em contrapartida, o volume dedicado ao sambista Paulinho da Viola, da série Perfis do Rio (Relume Dumará) escrito por João Máximo, tem apenas 130 páginas. Realmente, não deixa de ser engraçado.
No caso específico do livro dedicado a Paulinho, como a idéia é fazer apenas um perfil do artista, o livro não chega a ser uma bio completa. Levando em conta que Paulinho é um artista solo e sua personalidade é low-profile ao extremo, fica mais claro o porquê do desnível entre os livros. Como perfil não só de Paulinho, mas também do cenário do samba e do choro cariocas (Paulinho é uma mistura perfeita dos dois gêneros: nasceu ouvindo choro por influência do pai mas viveu frequentando escolas de samba, na época em que os galpões ainda não eram fashion) e, por extensão, do próprio Rio de Janeiro que Paulinho conheceu na adolescência, a narrativa de João Máximo é imbatível. Relatos do espaço geográfico que Paulinho percorria na época – morava em Botafogo, tinha parentes em Vila Valqueire, etc – e do surgimento das escolas de samba chegam a lembrar livros como Guimabustrilho, de Nei Lopes e O mistério do samba, de Hermano Vianna, pela documentação da história do subúrbio carioca e de um gênero que dificilmente ganha espaço na mídia e nas rádios sem se travestir.
Claro, não poderiam faltar questões ligadas ao mercado musical que deixa um gênio como Paulinho sem lançar discos e sem aparecer no rádio durante anos – a desastrosa associação do cantor-violonista com a WEA brasileira, no início dos anos 80, chega a ganhar um capítulo especial, embora seja abordada de forma unilateral por João Máximo (que chega a quase satanizar André Midani, presidente da companhia na época). Outro detalhe é que o livro não vai chegar a despertar o interesse de quem não curte o trabalho de Paulinho – ao contrário do livro sobre os Titâs, uma verdadeira lição de sobrevivência no mercado fonográfico brasileiro, muito embora a trajetória da banda tenha tido lances absolutamente discutíveis, como as inúmeras guinadas dadas durante os anos 90.
A vida até parece uma festa começa direto no ponto que parece o mais importante na carreira do noneto-octeto-septeto-sexteto-quinteto paulista: o famoso show que eles deram no Teatro Carlos Gomes (RJ) após o lançamento de Cabeça Dinossauro. Após a apresentação, não restou uma cadeira do teatro no lugar – sinal de que, bem ou mal, os Titãs mexiam de verdade com seu público. Como biografia, o livro é um esforço de reportagem: foram entrevistadas quase todas as pessoas que fizeram parte da história do grupo ou que ao menos eram amigas da banda (um leque que vai desde o primeiro empresário, Aldo Gueto, até Lobão, primeira pessoa para quem o grupo mostrou Cabeça Dinossauro, já pronto). A saída de Nando Reis, que pegou a todos de surpresa, também está lá explicada em detalhes – embora a visão da banda, meio que transformando Nando em vilão, seja a predominante nesse momento do relato. Rica também nos aspectos meio pantanosos da banda, como o uso de drogas (o relato do dia em que Nando Reis, drogado, pagou o maior mico no programa Ana Maria Braga, é tragicômico), a bio é uma verdadeira lição de empreendedorismo, servindo até como livro didático para banda novas. Conta como um bando de pessoas que inventava sempre coisas novas para fazer em cima do palco foi se transformando em banda – e como essa banda, cujos integrantes talvez nem fossem especialmente brilhantes sozinhos (pelo menos no início) foi ganhando experiência comercial a ponto de investir pesado na própria carreira. Mesmo que fique a impressão de que, no fundo no fundo, os Titãs são uma bem sucedida empresa – assim como acontece com o Kiss, por exemplo – impossível não passar a ter admiração pelo grupo paulista após encarar as 400 páginas de A vida até parece uma festa. Para curiosos, o livro ainda traz um belo caderno com várias fotos e um capítulo com informações detalhadas sobre a ascenção e queda do selo Banguela, que a banda criou nos anos 90 (sabia que por pouco o Charlie Brown Jr. não foi contratado?).
Em Dias de luta, o jornalista Ricardo Alexandre impressiona pela quantidade de entrevistas e entrevistados: Titãs, Renato Russo, Nelson Motta, Lulu Santos, André Midani, Washington Olivetto e muitos outros. O livro começa falando sobre o rock dos anos 70 – tomando como base o Vímana, que originou Lobão, Ritchie e Lulu – e fala sobre bandas que talvez ninguém que não fosse fâ imaginasse em biografar: 14 Bis, A Cor do Som, Roupa Nova. O livro é uma obra que interessa não só a fãs do rock brasileiro dos anos 80, mas também a qualquer pessoa que queira entender o amálgama político-social-cultural que estava por trás da entrada do rock no cenário brazuca. Perdido hoje em maquinações indie e em bandas que a cada dia perdem seu canal de comunicação com o povo brasileiro, o rock nacional já foi um “movimento” capaz de falar com a adolescente de Ipanema, o garotão de Niterói, a menininha de Pernambuco, avós, pais e netos, e o livro deixa isso bem claro – ao mesmo tempo em que conta casos nunca antes relatados de bandas como Camisa de Vênus (sabia que a banda foi contratada pela WEA nos bastidores de um show catártico, após o qual André Midani se dirigiu a Marcelo Nova e disse: “Isso não foi um show, foi um insulto!”?), Legião e Ira!. Vale até como livro de cabeceira de quem nem se interessa por rock nacional dos anos 80 – perfil no qual o próprio Ricardo Alexandre se encaixa, segundo ele mesmo. Mas para quem curte, fica a certeza de que nunca um movimento, na música brasileira, mereceu uma análise tão rica, detalhada e cheia de links históricos.
Finalizando, uma novidade: a banda metálica carioca Vilipêndio (do CD 15 abismos, que até já recebeu resenha aqui no Central da Música) aventurou-se pelo mundo das letras. O líder Ricardo Caulfield transformou o disco de sua banda num livro com o mesmo nome – cada música do CD deu origem a um capítulo, e os temas abordados são tão pesados quanto as músicae letras da banda. Rolam assuntos como polícia, drogas, sexo, crime, religião… Além do conteúdo, que é de primeira, vale destacar o trabalho gráfico do livro, também excelente, ainda mais em se tratando de uma aventura independente. A banda tem seu site em www.vilipendio.hpg.com.br, mas quem quiser o livro pode falar direto com o Ricardo em ricardocaulfield@hotmail.com.
RICARDO SCHOTT, 28 anos, faz o blog Discoteca Básica (www.discotecabasica.blogspot.com) e escreve em vários outros sites.