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Tudo Velho: Jovens tardes contra o preconceito

É assim que eu estou procurando ver as coisas agora: sem preconceito. Sem nenhum mesmo, incluindo desde Kelly Key até Mariah Carey, passando por Mantovani e Whitney Houston. Tive essa brilhante idéia desde que li o livro Eu não sou cachorro não, do historiador Paulo César de Araújo, onde o autor simplesmente traça um painel político-existencial da música brega dos anos 70. Ele defende a idéia de que os cantores ditos “cafonas” (brega é uma expressão oitentista) tinham um papel mais social e político do que se suspeitava. Isso até que tem a ver: cantar “Eu não sou cachorro não” após uma dor de corno mal-resolvida, um problema no trabalho ou um esporro brutal do patrão cai melhor do que imaginar o drama do operariado sendo cantado de forma quase matemática e lógica em “Construção”, do Chico Buarque. De certa forma, não dá pra desvincular nenhum tipo de música de seu papel social: cada cantor ou grupo é porta-voz de algum segmento da sociedade. Quando se vê que Sandy & Junior, Kelly Key e Wanessa Camargo são porta-vozes de grande parte da juventude, dá pra alinhavar conclusões e entender um pouco como funciona esse mecanismo – mesmo que não dê para curtir esses artistas.


O engraçado foi que, domingo agora, tive uma demonstração brutal de que, realmente, a minha fase paz-e-amor está provocando grandes modificações: me peguei assistindo o especial Jovens tardes de domingo (sim, aquele da Globo – e da Marlene Mattos) e gostando da Wanessa Camargo cantando “Tanta saudade”. Sim, “Tanta saudade”, um tema que soa como uma versão antropofágico-tropicalista de Mariah Carey, mas que – reconheçamos – tem seu valor. KLB, Sandy & Junior, Wanessa Camargo… tudo isso, deslocado de suas questões mercadológicas, tem seu valor, sim. O tal programa, Jovens tardes… ajuda a jogar mais uma pedrinha no laguinho da Jovem Guarda e volta com uma das grandes obsessões dos empresários e gravadoras brasileiros: reeditar aquele que parece ter sido o mais lucrativo fenômeno da música brasileira. Não dá para repetir Mamonas (lógico) e o RPM demorou até se encontrar de verdade, com sua formação original, mas sempre vai haver um jeito de pegar algum fenômeno novo e dizer: “essa é a nova Jovem Guarda”. A tentativa agora é com o pessoal do KLB, do Pedro & Thiago e com a Wanessa, além do meio deslocado Fael. Assim como na Jovem Guarda original havia o triunvirato central e uma série de “periféricos”, aqui também existem determinados satélites: o pessoal do LS Jack, Luciana Mello, SNZ… Isso sem falar naqueles que seriam o Roberto e o Carlos da história: Sandy & Junior, não incluídos por pertencerem a outro núcleo da emissora.


E funcionou? Apesar da forçação de barra (já dizia o Paul McCartney que não dá pra requentar um suflê…), é até provável que dê certo. Pelo menos o programa já conseguiu alguns méritos: trouxe de volta Marcos Roberto (o da “Última carta”) e apresentou Paulo Sérgio e Sérgio Murilo para as novas gerações. Paulo Sérgio, para quem não sabe, é um fenômeno até hoje inexplicável – morto, quase sem discos em catálogo, continua com um fâ clube imenso, que provavelmente irá lotar o Cemitério do Caju no dia de finados de 2002. Sérgio Murilo, rei destronado do rock brasileiro, morreu esquecido, apesar de ter tido inúmeros sucessos numa era pré-Jovem Guarda. Um dos três garotos do KLB (não lembro qual) conseguiu arrancar do niteroiense Ronnie Von uma confissão no estilo furo-de-reportagem: ele se arrepende de muita coisa de seu repertório. Ronnie, que se ressente até hoje de vários projetos seus não terem ido para a frente (como os discos arrojados que gravou no fim dos anos sessenta), apareceu ainda em velhos tapes dos anos 60, meio constrangido, cantando “Meu bem”, expondo mais ainda o motivo de tanto ressentimento. O lado B da Jovem Guarda incluía ainda muito mais gente que nem ao menos foi lembrada, aliás.


E, ah, lógico: o programa ainda conseguiu unir, anos e anos depois, Leno & Lilian. Os dois chegaram a romper a dupla por causa de brigas e nunca funcionaram realmente bem, mas voltaram pelo menos para aparecer no programa. E ensinou o verdadeiro valor de Wanderléia, que voltou aos quase 60 anos, em roupas justas e cantando melhor do que há trinta anos atrás. O engraçado (outra coisa engraçada…) é ver que a maioria desses artistas antigos tem tanta coisa a ensinar que esse programa pode até virar um grande laboratório para esse pessoal jovem todo. Leno largou Lilian, foi trabalhar com Raul Seixas, teve discos censurados e gravou pelo menos um disco relevante, o estranho Meu nome é Gileno (lançado até em CD, pela Sony). Wanderléia, quando largou a CBS, foi pra Philips e lançou discos de MPB/pop/rock radical, com direito a músicas de Jorge Mautner – na verdade, Wanderléia chegou até mesmo a ter um affair rápido com Egberto Gismonti e a gravar um disco com ele, nos anos 70. Artistas como Ronnie Von, Eduardo Araújo e Golden Boys, entre outros, sofreram metamorfoses enormes durante suas carreiras, a ponto de já não caberem no conceito de Jovem Guarda. E, de certa forma, a não caberem mais em conceito nenhum, o que ateroriza qualquer mercado musical conhecido. Por não poderem ser encaixados nem no mercado “popular” (o rock, antigamente, era quase primo do brega no Brasil) nem se encaixarem em nada, esses discos nem são conhecidos e vários artistas foram atirados na lata de lixo.


Mesmo que a Jovem Guarda nada ingênua e detalhadamente calculada de Marlene Mattos dê certo, e que os trabalhos de toda essa turma tenha muito valor, o grande valor desse povo todo se confirmaria mesmo no momento em que Wanessa Camargo, KLB & cia se rebelassem contra esse ou qualquer outro rótulo e decidissem fazer coisas mais adultas e ousadas. O problema é que aí eles é que iriam enfrentar um grande preconceito… bem maior do que o de muita gente que se recusa a ver que a música dita “cafona” tem valor, que os sertanejos têm vocais e melodias legais, que Sandy & Junior até que têm músicas bacanas e tal. Aí é que mora o perigo…


RICARDO SCHOTT, quase 28 anos, faz o blog de música Discoteca Básica (http://discotecabasica.blogspot.com) e escreve em sites de música como o Clique Music e o Ruídos.

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