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Tudo Velho: A celebração rocker dos Black Crowes

Discos ao vivo, com certeza, não são a maneira mais criativa de se encerrar uma carreira – mas no caso dos Black Crowes, devemos jogar as mãos para o céu e dar graças a Deus por eles não terem resolvido fazer o seu “último e melhor trabalho”, ainda mais levando-se em conta que o grupo vinha se arrastando já faz algum tempo, com Chris Robinson, o vocalista, num sai-não-sai desgraçado. O risco de sair um disco podre de tão burocrático seria enorme, e a carreira dos BC – grupo que gerou discos perfeitos como Amorica e By Your Side e outros nem tanto, como Three snakes and one charm – poderia ser mal e porcamente fechada. E The Black Crowes Live, lançado ano passado, vale por uma aula de rock n roll.


Antes de mais nada, quem gosta de rock tem mais é que lamentar a perda dos BC. Surgidos e criados à margem do estouro grunge e da punkerização-metalização do rock nos anos 90, os Black Crowes são setentistas até a medula, capricham no discurso cabeça durante os shows, mostram-se imunes a qualquer som feito após 1975 e adicionam ao roquenrol radical pitadas generosas de soul e gospel – o que transforma músicas como”Cosmic friend” e “Sometimes salvation” em, antes de qualquer coisa, experiências rock n roll, emocionantes e gratificantes. O primeiro disco, Shake your money maker (1990), por exemplo, soava totalmente distante de qualquer tendência mercadológica. O que poderia soar como comercialóide num disco do Robert Cray, por exemplo (como a sonoridade bluesy-branca, não muito inovadora, os corais gospel e as guitarras limpas, sem muita distorção) era utilizado como motivo de orgulho pelo Black Crowes, como oposição ao que rolava – e isso ficou bem mais claro quando as camisas de flanela começaram a dominar a cena. Eram músicos que viviam o que tocavam e tocavam o que viviam, sem resquícios de mauricice ou poseurismo, quase uma banda como antigamente, mesmo.


O som do primeiro CD foi acrescido de muita ousadia e de experimentações em estúdio nos discos seguintes, The Southern Harmony And Musical Companion (1992) e, especialmente, Amorica (1994). The southern… tinha um clima psicodélico, descarnado, explícito em músicas como “Sometimes salvation” (lembram do clipe?) e “Remedy”. Amorica, por sua vez, era enfumaçado, cheio de altos e baixos – soava alegre em vários momentos e melancólico em muitos outros, assim como a vida - e até hoje é tido como o melhor disco da banda. Faixas como “Conspiracy”, “Descending” e “High head blues” atestam isso. São três momentos de celebração rock n roll, aquilo que um dia foi definido pela frase ”whole lotta shaking going on”. Precisa mais?


A fase áurea da banda é desses dois CDs, mas os BC ainda continuaram fazendo ótimos discos. Three snakes and one charm (1996) tem várias músicas legais, mas é tido como irregular pela maior parte dos fâs. By Your Side (1998) chega a um resultado próximo do de Amorica. Live at The Greek, com Jimmy Page (2000), é talvez um dos momentos mais comoventes que o rock já nos deu, sem exagero ou favor algum – e Lions (2001) surpreendeu muita gente que já não dava nada pela banda. Desacreditados por várias pessoas que não enxergavam nos Black Crowes nada além de um grupo que vivia de repetir fórmulas – quando a maior graça da banda residia no fato de ir além dos clichês criados pelo rock dos anos 70, tornando os BC quase uma embaixada setentista no anos 90 – eles reúnem nesse disco ao vivo boa parte dos sucessos que foram acumulando durante sua carreira. As versões são bem mais pesadas e esticadas que as de estúdio. Tem “High head blues” com mais dois minutos de solos, “Black moon creeping” com diálogos entre Chris Robinson e as meninas do coral gospel, uma “Hard to handle” mil vezes mais ágil, “Remedy” em versão derramada, cheia de feeling, uma “Wiser time” (a canção mais bela da banda) de chorar, etc.


Com o fim da banda, os irmãos Rich (guitarra) e Chris Robinson vão cada um pro seu lado – o primeiro passa a excursionar com a banda Hookah Brown e o segundo gravou solo o disco New Earth Mud, cheio de homenagens à amada Kate Hudson – por sinal, atriz do filme Quase famosos, cujo tema central é a mudança de paradigma no rock por volta dos anos 70, assunto extremamente caro a uma banda com a trajetória dos Black Crowes. Uma pena que os vários problemas de relacionamento da banda (comuns, por sinal, em bandas com irmãos na formação) foram deteriorando os Corvos por dentro. No palco, nada parecia abalar a banda, como se pode ver nas 19 faixas desse disco duplo – que aliás ainda pode ser encontrado em algumas lojas por preços girando em torno dos 30 reais. Compilando gravações da turnê de Lions – disco excelente que vendeu pouquíssimo e acabou desanimando mais ainda os Crowes – o CD vai acabar fazendo os BC arrumarem muitos fâs tardios. Compre correndo.


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Essa também não dá pra deixar de falar, ainda mais quando antes se fala dos Black Crowes. O Grand Funk Railroad, grande nome dos anos 70, acaba de ter alguns discos relançados em CD no Brasil, com faixas bônus e um som bem melhor que o de várias edições anteriores, inclusive importadas. Assim, enquanto a famosa caixa da banda não sai por aqui (provavelmente, nem vai sair, só importando), o fâ brasileiro pode encontrar nas lojas, e por um preço até que razoável (20 reais em alguns lugares) os discos On Time, Grand Funk, Closer To Home e Live Album. Todos são obrigatórios para quem curte bandas como o BC, mas devem ser conhecidos por toda pessoa que curta rock, independentemente do gênero.


A banda de Mark Farner e Don Brewer, sempre mesclando o espírito estradeiro do rock com o paz-e-amor sessentista, teve momentos ótimos em sua carreira, e seria legal que outros discos, como We´re an American Band (melhor vinil da banda) e o duplo ao vivo Caught in the act estivessem disponíveis por aqui. É ouvir e entender o porquê do nome “Grand Funk”: o som da banda é curtido em poderosas linhas de baixo, melodias com integridade black e vocais gritados. Black Crowes e Grand Funk, duas bandas separadas pelo tempo, mas unidas pela inspiração musical, foram dois grupos que realmente fizeram o rock valer a pena. E isso todo mundo tinha que saber.


RICARDO SCHOTT, 28 anos, escreve para vários sites de música e edita o blog musical Discoteca Básica (www.discotecabasica.blogspot.com).

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