Tudo Velho: 100 anos de Odeon (tava na hora, né?)
Ano passado chegou a ser noticiado em jornais que o titã Charles Gavin estava conseguindo carta branca de todas as gravadoras brasileiras para poder trabalhar em seus projetos de relançamentos, menos da EMI. A EMI, que tem um acervo riquíssimo de música popular brasileira – foi talvez a única gravadora que trabalhou com todos os movimentos conhecidos da música brasileira, do rock dos anos 50 ao dos anos 90, passando pela jovem guarda, artistas sessentistas, prog mineiro, bossa-nova, etc – já teve seus arquivos remexidos das mais diferentes formas. Foi a primeira gravadora a lançar CDs 2 em 1 (numa memorável série que só pecava pela falta de informações), soltou CDs com capas dos LPs em miniatura, foi uma das primeiras gravadoras a investir em coletâneas duplas a preço de CD simples – com a série Meus Momentos -, etc. Só que…
Bom, só que faltava uma série como a 100 anos de Odeon, que lança em CDs individuais – e com remasterização cuidadosa – discos individuais dos arquivos da antiga Odeon e da Copacabana. Por trás de tudo, está, finalmente, Charles Gavin, acompanhado pelo chefe do tablóide International Magazine, Marcelo Fróes – que assina os textos (muito bons, por sinal) de apresentação de cada CD. Os textos vêm numa lombada meio boboca que quase todas as lojas estão jogando fora junto com o invólucro de plástico, aliás. A série, sob todos os aspectos, é indispensável. Os nomes escolhidos há muito tempo tinhas discos procurados em sebos e alguns deles não tinham praticamente nada em catálogo – os dois discos solos de Tony Tornado, lançados no início dos anos 70, eram vendidos quase ao preço de um iate tipo Eugenio C. Discos como Elza Pede Passagem, de Elza Soares, e Quem é quem, de João Donato, são fundamentais para se compreender essa tão falada “linha evolutiva” da música brasileira.
Entre os discos escolhidos, vários saltam aos olhos pela raridade. Eram LPs cujo relançamento digital há muito vinha sendo pedido – e cujo conteúdo vinha sendo pulverizado em milhares de coletâneas. Os dois de Tony Tornado, por exemplo, vêm na hora exata em que o cara está no ar na novela da Globo – e mostra que, além da bela “BR-3″, o repertório do cantor ainda tinha souls de rachar assoalho como “Breve loteria”, “O repórter informou” e a sacana “Bochechuda”. O primeiro LP solo de Lô Borges, outro grande exemplo, foi lançado em 1972 (por um selo rockeiro da Odeon na época, o Coronado) e nunca tinha sido relançado – nesse caso, pelo menos músicas como “Faça seu jogo” e “Você fica melhor assim” (gravada pelo Skank nos anos 90, com o próprio Lô nos vocais) vinham há muito sendo escutadas em coletâneas, ainda que com masterização meio mais ou menos. Para quem nunca viu, é o famoso “disco do tênis”, com aquele par de tênis (um Bamba?) na capa, representando o cantor. Discos de artistas como Di Melo (um dos pais do samba-rock, pouco conhecido, mas que fez sucesso com músicas como “A vida em seus métodos diz: calma”) e Noriel Vilela (rei do sambalanço e da sacanice, precursor de Bezerra da Silva e Dicró, com o hit “Só o ôme”) provavelmente nem eram tão procurados, mas têm a chance de atingirem um público que não lembrava deles ou nem ao menos os conhecia.
De raridades brabas, tem o disco que Joyce dividiu com Nelson Angelo (tem uma foto dos dois – separados – na capa, sem os nomes), um disco rockeiraço de Eduardo Araújo (A onda é boogaloo), com a mãozinha do então desconhecido Tim Maia, um disco do Conjunto (ex-Trio) 3D (com Antonio Adolfo e Beth Carvalho, a cantora, na capa) e… É, a EMI lembrou que um dos artistas brasileiros mais conhecidos no Japão, Marcos Valle, teve toda a fase inicial da sua carreira ligada a ela. Samba Demais, primeiro disco do cara, é mais bossa-novista do que os discos subseqüentes – por sinal os melhores, como Mustang Cor de Sangue e Garra. A EMI, aliás, já tinha reeditado três CDs de Marcos numa caixinha na série Portfolio e nunca mais os recolocou nas lojas… No entanto, Recital na Boate Barroco, da Maria Bethânia, com sua famosa capa idêntica a de Revolver dos Beatles, já tinha sido relançado algumas vezes em CD e reaparece aqui. Outra grande raridade, essa pouquíssimo citada, é o famoso disco de Norma Benguell, Oh! Norma, lançado na época em que a atriz e diretora tinha fama de pin-up girl no Brasil.
Que mais? Bom, saiu também um disco que a própria EMI já tinha reeditado, o do Quarteto Novo – com Hermeto Paschoal, Airto Moreira e outros. Entre outros lançamento de conjuntos e etc, pescam-se várias pérolas, como o disco O país tropical Via Paris, de Nonato Buzar, compositor-chave da mistura de bossa-nova com rock, jazz e R&B – teve músicas gravadas por Wilson Simonal, entre outros -, o disco de 1980 do guitarrista Toninho Horta (com aquela famosa gravação de “Manoel, o audaz”, trazendo Toninho e Lô Borges dividindo vocais), além do disco da dupla Burnier & Cartier – responsáveis por alguns sucessos soul gravados por grupos como Quinteto Ternura – e LPs antigos de Eumir Deodato, Quarteto em Cy, Francis Hime, entre outros. Mesmo que faltem discos importantes – e que cada CD seja lançado com uma tiragem limitadíssima de 2 mil cópias – a coleção vale por uma aula de MPB.
E aí que aparecem algus problemas: os discos estão sendo reeditados com cuidado no som – impecável, pelo menos nos que já escutei até agora – mas existem falhas homéricas nos encartes, impressos com descuido (já aconteceu de um CD estar com as informações de outro disco que não tinha nada a ver). A falta de informações importantes sempre é um problema e, agora que um disco só pode ser relançado a partir do momento em que se rastreiam as pessoas que partciparam do lançamento original, é imperdoável a falta de fichas técnicas e artísticas em certos discos. Pelo menos a série já fez uma coisa que várias outras não fazem, trazendo a lista dos discos relançados impressa no encarte, com as capas e tudo – assim pelo menos não fica aquela impressão de que os discos foram jogados nas lojas, sem cuidado. No mais, é esperar para ver se vai ficar só nisso.
RICARDO SCHOTT, quase 28 anos, colabora com vários sites de música e faz o blog musical Discoteca Básica (http://discotecabasica.blogspot.com).