Luz e Trevas em torno da página do relâmpago elétrico
Pisca – Pisca
Um disco que induz à vida. Toda luminosidade que sugere o título surreal se multiplica desde o primeiro acorde, ou a primeira folha do livro, até o final no chorinho Belo Horizonte. Olhem com ouvidos bem atentos: abertura com uma canção experimental na sonoridade e libertária na poesia, gran finale com uma apologia “careta” ao saudosismo. Ninguém botou reparo nisso, na época, nem deveria, e nem devem os episódicos ouvintes atuais desse espécime único na discografia de Beto Guedes e da música brasileira. Para melhor entender isso, acendam o abajur que vou contar umas histórias.
Meia Luz
A moçada de outrora era dividida em adeptos da MPB (os mais à esquerda), rock (esquerda festiva e anarquistas) e pop (os alienados e alienígenas). Embora a maioria dos universitários se enquadrassem, claro, nas duas primeiras categorias, e houvesse marcação cerrada aos que aderissem, ainda que ocasionalmente, ao terceiro grupo, eu, mesmo antes de virar “bicho”, pré-discotéque, já ouvia o “som da pesada” (com Big Boy) e o “som de boate” nas madrugadas da rádio Mundial-RJ. Numa linha seguida depois pela Excelsior e a Difusora, em São Paulo (todas ainda AM), tocava-se, numa mesma meia-hora e sem nenhum pudor, rock n roll (hard-rock e progressivo) , muito pop (som da Filadélfia, Motown, som da Califórnia), e de vez em quando MPB (Chico e principalmente Milton).
Havia outras emissoras que mantinham uma programação diferenciada, como a Bandeirantes e a Jornal do Brasil, baseando-se na MPB e no pop mais melódico (James Taylor, Elton John), e dificilmente tocando rock. Mas foi na Bandeirantes, por exemplo, que primeiro ouvi Alice Cooper (No more Mr. Nice Guy, Teenage Lament 77).
Assim, tinha a “cabeça feita”(diria O Peso), musicalmente falando, embora politicamente imaturo, quando entrei na USP em 1977, ao mesmo tempo em que floresciam as primeiras greves no ABC, a moda “disco” pegava no Brasil, e as FMs passavam a dominar o dial de forma avassaladora. A então realmente Jovem Pan, com ótima qualidade de som e potência alcançando toda Grande São Paulo, tocava o dia inteiro as novidades das pistas, ante narizes torcidos à esquerda ou à direita.
Passei a viver uma espécie de Quadrophenia: de manhã, na faculdade, na ansiedade do engajamento político, passei a venerar as letras do Clube da Esquina, que supria também a minha sede por melodias cromáticas; à tarde, rodando pelos bares (Léo, Brahma) e lojas de disco do centro (Breno Rossi, Bruno Blois, Museu do Disco), e indo no onda de colegas mais abastados, comecei a gostar de Jazz; à noite, nas festas do campus (FAO, ECA, Sociais), rolava só rock e acessórios; e nos finais de semana, non-stop disco dancing (Banana Power). Havia também o samba, mas aí é outra história.
Numa dessas noites, porém, a quadrophenia se dissolveu no preparo para o mais esperado acontecimento musical de 1977: a apresentação de Milton Nascimento no 1o Festival de Jazz de São Paulo. Ídolo nacional dos esclarecidos da época, com o récem-lançado LP Geraes nas paradas, num dos raros casos em que a poesia política teve um casamento feliz com a musicalidade, o mineiro nascido no Rio havia feito um show memorável (há uma grande foto na capa do Geraes) no anfiteatro da USP em 1975, e desde então não se apresentava em público. Vim a saber o porquê naquela noite.
Trevas
Raul de Souza, que então colhia os frutos do sucesso internacional de seu funk-fusion Sweet Lucy, abriu a noite trazendo como convidado Frank Rosolino, trombonista que participou da corrente “jazz progressivo” nos anos 50. Em seguida, George Duke não deixou pedra sobre pedra no palco do Anhembi, sem disfarçar de ninguém o tempero soul e rock embutido no seu jazz eletrônico.
Milton entrou com atraso de quase uma hora. Quer dizer, “entrou” não é bem o termo. Visivelmente embriagado, tentou iniciar e terminar umas dez canções, sem êxito. Letras esquecidas pela metade, discursos ininteligíveis, o violão tocado como que por um aprendiz desorientado. O grupo que o acompanhava, constrangido, estendia ad infinitum os solos e partes instrumentais, mas haja arranjo para tanta lambança. Após uma patética tentativa de incentivar a platéia a acompanhá-lo na bela “Um Girassol da Cor de seu Cabelo”, de Lô Borges, acabou retirado do palco por amigos naquele momento mais sóbrios, Elis Regina entre eles. Agradeço-os até hoje, pelo alívio à angústia coletiva que ali se instalara.
Infelizmente, o destino me fez presenciar um repeteco do vexame, dessa vez com Beto Guedes, num show do projeto Sesc – Seis e meia, em 1980. Mas também, fazer show às seis e meia da tarde no centro de São Paulo, é rapadura, hein, compadre?
Luz
Mas chega de trevas; quero falar de luz. A energia que a “Página” irradia perdoa qualquer pecado. Foi em outubro de 1978, no toca-fitas do carro de uma namorada mais abastada, rodando entre as luzes de neon do campus da USP, que abri pela primeira vez a “folha do livro”. Confesso que houve bem melhor aceitação na segunda audição, regada a uma cachaça artesanal de Fartura, interior de São Paulo.
A música dos Andes (charango, poncho e conga) havia influenciado bastante o “Geraes” de Milton, e a princípio me pareceu que o disco de Beto seguia a mesma linha. Aos poucos se descobre, porém, que os ritmos sul-americanos foram incrementados com uma gama de pulsações que vão do Jazz até Vivaldi e Wagner, além da clara abordagem “rock n roll” adotada pela produção na concepção da sonoridade. Similar, não sei se intencionalmente, à “wall of sound” (numa tradução livre, um som áspero e robusto como uma parede) de Phil Spector, produtor que, curiosamente, afirmava ter uma “abordagem wagneriana do rock n roll”. Confiram no disco “All things must pass”, de George Harrison, produzido por Phil, e cujo clima etéreo nos traz de volta à “Página” , que, aliás, só fui mesmo comprar quando outro colega abastado, apreciador de música erudita e principalmente de Wagner, me confessou seu encantamento com “Bandolim”, faixa instrumental.
Embora Beto, nas raras vezes em que fala, reafirme sempre que aprendeu a tocar com os Beatles, nesse disco eles estão só em espírito, além da maçã na capa e no selo (do vinil, obviamente). Percebo muito a presença do “rock progressivo”( Jethro Tull, Yes, Genesis, Focus), mas ainda mais a de Jimi Hendrix, aquele que queria sua guitarra soando como um avião. O bandolim de Beto, por sua vez, é um planador.
Na época, nenhuma tribo assumiu o disco: os da MPB o descartaram por ser elétrico demais, e não conter mensagens conta a ditadura militar; para os roqueiros, era acústico e “família” demais (onde já se viu, gravar música do pai…); para a moçada pop, não tinha música para dançar; já para o Erasmo Dias, chefe da repressão policial em São Paulo, era “música de maconheiro”.
Talvez o rótulo “progressivo” (seja lá o que isso queira dizer) seja o mais adequado. No Brasil, poucos foram os grupos adeptos dessa linha; me vêm à memória O Som Nosso de cada Dia, Violeta de Outono, Nave. Os últimos trabalhos do Terço (do qual alguns integrantes participam da “Página”) passam perto. Agora, se a questão é rotular, vou chamá-lo de “disco impressionista”. Claro que não é o caso aqui fazer analogia com os tons alaranjados de Van Gogh, ou com a textura granulosa das catedrais de Monet, por isso vou dar minhas próprias pinceladas em cada faixa:
A Página do Relâmpago Elétrico: os acordes no bandolim barroco laçam o coração onde quer que esteja, enquanto a vitalidade do vocal, “cantando até arrebentar”, nos faz mergulhar inteiros na viagem dos sentidos; o crescendum de intensidade, presente nas demais faixas, sob violões, baixo (nada menos que Toninho Horta) e bateria levando um ritmo andino, na verdade muito próximo do flamenco andaluz, lembra as gravações de John Coltrane, grande saxofonista de Jazz, nos anos 60; essa ponte entre Andes, Granada e Montes Claros revela raízes mouras, confirmadas no disco Andaluz, de 1991.
Maria Solidária: um flamenco eletrificado, louvando a liberdade dos moleques e de quem dançar, contraponteando com o fervor do vocal e o intermezzo do órgão, que a tornam quase uma canção religiosa.
Choveu: o bandolim alça vôo, incentivado por baixo e bateria (Hely), colocando-nos dentro da paisagem; os eruditos chamam isso de “música programática” (música descritiva da natureza).
Chapéu de Sol: os leitores por certo sabem o que quer dizer essa expressão; é a faixa mais francamente “progressiva”, com o moog repetindo uma melodia cromática sob uma bateria à la Bill Brufford.
Tanto: o moog e o vocal seguem o traçado das montanhas, em contraste coma as nuvens que passam com as corda: pura melodia mineira.
Lumiar: um rock com a síncope alterada, viola guitarrando no meio da mata, canção que cintila por si só.
Bandolim: “cores da madrugada onde lavo meus olhos”, diria Manuel Bandeira, um “poeta menormenormenorme”, segundo José Paulo Paes; uma melodia melancólica nos mantém em suspense , flauta e bandolim dialogando com o baixo e percussão, até que, anunciada pelo baixo, surge a guitarra hendrixiana como se fosse um sol, propiciando a decolagem mais bem sucedida da música universal; puro êxtase, diria o Barão Vermelho.
Nascente: pérola de Flávio Venturini, numa levada de balada-rock, faz lembrar que o corpo e a sensualidade também estão firmes nessa viagem.
Salve Rainha: osvocais prenunciam o 14-Bis, que seria formado praticamente com os músicos desse disco; um grupo que começou bem, trazendo aí sim bem clara a influência beatle em seu primeiro trabalho, mas que depois enveredou por um pop-rock xaroposo, fazendo-nos confundi-lo com o Roupa Nova.
Belo Horizonte: choro clássico, só para ratificar a destreza instrumental de Beto; fim da viagem, tudo em família, dormir pra sonhar.
O Ronco do Trovão
É uma gravação atípica do Clube da Esquina, principalmente com relação aos discos de Milton. Nestes, parece que sempre ficamos devendo uma reverência ao deparar com tamanha musicalidade. No caso da “Página”, uma onda real nos invade, e nela navegamos entregues, no tempo em que “sua presença para parava a tarde suspensa”.
Nas letras, a palavra sã de Ronaldo Bastos propõe uma libertação interior através do exercício dos sentidos, dionisíaca e reichianamente, como alternativa não excludente à proposta de mudança política que lhe corria paralela. Celebra o contato com a natureza sem afetação e sem pieguice pseudo-ecológica. Trata-se, mais que um manifesto, um convite a participar da pulsação do planeta.
Há duas forças vitais que conduzem essa pulsação no disco: o bandolim e o vocal em falsete de Beto. Instrumento luminoso desde Luperce Miranda e Jacob, o bandolim tocado por este filho de baianos vem acrescido de pontuações de música barroca, jazz e rock. Já algumas oitavas acima, fazendo fogo brotar do chão, o falsete sustentado por Beto em todo o disco torna Jon Anderson, do Yes, uma patativa com gripe. Os microfones que tiveram a felicidade captá-lo são hoje guardados a sete chaves no museu de geologia de Ouro Preto, já que só o ouvimos novamente em “Novena”, canção do segundo disco, e na verdade uma gravação da época da “Página”.
Quanto aos arranjos, todos coletivos, exceto a colaboração inestimável de Toninho Horta para as cordas, destacam-se pela eficácia e a ausência de pompa. Talvez a não comparecimento do “titio” Wagner Tiso tenha deixado os meninos mais à vontade.
Sem dúvida, foi um trabalho de muita inspiração, mental, espiritual e também física, pois ninguém é de ferro, nem mesmo os que nascem em Minas. Um disco que certamente nenhuma grande gravadora lançaria nos dias de hoje, o que só é mais um ponto a seu favor.
PS: Viajei nessa época, e agora recentemente, para o interior de Minas; ladeando as estradas ainda hoje esburacadas, as montanhas repartidas por lâminas exatas, e o brilho dos minérios quase me ofuscando: a luz do relâmpago nunca se perdeu em mim.