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Lincoln Olivetti: o toque de Midas dos anos 80

Diz a lenda que Midas, rei da Frígia, certa vez recebeu o deus Baco em seu palácio. Tendo sido bom anfitrião, foi agraciado com o dom de transformar em ouro tudo o que botasse a mão. A história do nosso Midas tupiniquim não difere muito, apenas que devemos entender a palavra “ouro” em seu duplo sentido:


1) ouro, o vil metal: nos tempos em que o rock-Brasil engatinhava e a era “disco” dava seus últimos suspiros, o arranjador, tecladista, produtor e engenheiro de som antenado com o pop mundial tirou do lodo o pé de muita gente boa, medalhões em decadência inclusos. Aí, movida pela inveja, a crítica ignara, irresponsável e xenófoba condenou o “bruxo dos estúdios” a anos de ostracismo;


2) ouro, o precioso metal: chamo de ignaros os críticos por não saberem do que falam. O sentido de “preciosidade musical” que resgato nos arranjos de Lincoln foi, na época, completamente ofuscado por asneiras ditas com a perfídia característica da “inteligenzia brasiliana”: “o sempre presente e indispensável Lincoln Olivetti”, citava com ironia uma revista especializada; “em termos de teclados, temos Olivettis melhores”, dizia um jornal do Rio, comentando sua participação na direção musical do show “Fantasia”, de Gal Costa; já um crítico paulista, hoje cicerone de reportagens exóticas no Fantástico, chamava de “arranjos-carimbo” a combinação de metaleira, cordas e teclados requisitada por todo produtor que precisasse resolver seu problema de hit-parade.


Falta de conhecimento técnico ou preguiça tendenciosa: grandes arranjadores nacionais, como Pixinguinha, Benedito Lacerda, Gaya, Lyrio Panicali, Zacarias, Severino Araújo, Erlon Chaves, Tom Jobim, Rogério Duprat, sempre beberam em fontes alienígenas (jazz, eruditos, boleros, musak, etc..) para construir, cada um, seu estilo. Lincoln sintonizava-se com a eficácia dos arranjos e da produção “disco” (Gene Page, Rod Temperton, Giorgio Moroder, de quem herdou os óculos), além de sempre priorizar a clareza e a qualidade do som, tendo como referência Quincy Jones e o grupo Steely Dan. Para virar ouro, porém, houve o toque pessoal, o qual apresento agora, numa seleção exclusiva, faixa a faixa, todas certamente disponíveis na Web, para quem quiser conferir:


Rita Lee estava num vai-não-vai em sua carreira quando lançou, em 1979, o disco que lhe deu propulsão para o estrelato. “Chega Mais”, a faixa de abertura, mostrou também ao mercado quem era Lincoln Olivetti. Já aparecem aí as frases curtas nos metais, características de grupos como Earth Wind and Fire, Seawind e Chicago; os teclados emulando recursos utilizados por Herbie Hanckok em suas incursões eletrônicas; e o “beat” vigorosamente “disco” mesclado a intervenções de uma percussão carnavalesca. A mesma linha “pop-carnaval” é retomada em “Lança-perfume”, de 1980, com direito a citação de “Alah-la-ô” no final. Produzida na era pré-digital,  é a melhor música já gravada no Brasil, no quesito qualidade de som. Segundo depoimento do próprio Lincoln, é Roberto de Carvalho, também um grande arranjador, quem faz a abertura ao piano, lenta no início, depois virando um tango acelerado; aí entram, se misturando, o piano elétrico de Lincoln, numa variação do famoso riff de Michael McDonald, do Doobie Brothers, em “What a fool believes”; e a guitarra stacatto de Robson Jorge. Noves fora, é a única levada de tango-funk que se tem notícia no mundo.


Outra abertura memorável, dessa vez ao Oberheim, foi em “Palco”, do disco “Luar”, de Gilberto Gil; inclusive, é a música preferida do atual ministro da Cultura. A sonoridade espacial dos teclados, em sintonia com o clima do disco, contrasta com os comentários urgentes dos metais, à la Banda Black Rio. Uma característica de Lincoln é a maleabilidade e adequação dos arranjos aos propósitos do artista e/ou produtor, coisa que seus detratores preferem chamar de servilismo. Na regravação de “Sentado à beira do caminho”, com os irmãos Roberto e Erasmo Carlos, o baixo não tem slaps, metais ficam mais ao fundo, cordas comentam refrão, e são explorados os timbres mais suaves do Oberheim, inclusive o efeito de emular os citados slaps, que faz a diferença nessa gravação. Pode até ter sido para agradar o rei, mas o resultado soa fresco (de frescor, não de frescura) e inovador até hoje.


Essa flexibilidade rendeu até uma conjunção inusitada: em 1984, Ednardo, o moleque travesso do Ceará, chamou-o para a faixa “Blue à flor da pele”, de seu disco “Água e luz”. E brotou um blues eletrônico de beleza rara, sons acústicos, sintetizados e órgão Hammond contraponteando com o sempre vital e provocador Ednardo, e seu violão-cavalo.


Com as cantoras, porém, foi que mais se evidenciou a empatia do arranjador. Como no disco “Um minuto além”, de Zizi Possi, especialmente na faixa “Never dreamed you´d leave in summer”. Ou com Marina, em “Só você” e “Corações a mil”; esta, com notável influência de Hal Davis, arranjador da Motown, e um marcante riff de diversos timbres do teclado em uníssono, denotando todo charme e malícia da letra e, claro, da própria Marina.


No disco “Fantasia”, de Gal, 1981, mais que ouro: dois diamantes:


1) “Festa no interior”, uma pintura de Volpi, combinando ousadia e modernidade (Oberheim em uníssono com metais de coreto, guitarra funk) com tradição(tuba, bombardino, caixa, surdo, triângulo), em equilíbrio dinâmico, com a nitidez do som tornando nítidas também as imagens da letra energética de Moraes Moreira (“fagulhas pontas de agulhas/ brilham estrelas de São João…)


2) “Meu bem, meu mal”, um bolero neo-clássico, onde nunca se ouviram flautas, bongôs e maracas tão bem gravados; orgulhosos da precariedade que imperava nas produções nacionais de então, alguns arremedos de Tinhorão tacharam de “mau-gosto” essa limpidez sonora. Felizmente, não pensavam assim arranjadores consagrados como César Camargo Mariano e Chiquinho de Morais, que incorporaram com tranqüilidade a influência de Lincoln em seus trabalhos.


Deixo para o final aquele que foi seu melhor trabalho em conjunto, no disco “Tim Maia”, de 1980. À frente de um timaço (Jamil Joanes, Paulinho Braga, Renato Piau, Djalma Corrêa, Márcio Montarroyos, Oberdan, Léo Gandelman), Lincoln e Robson Jorge, com o auxílio luxuoso de Serginho do Trombone, nos servem desde arranjos eficazes destinados às FMs e pistas de dança (“Você e eu, eu e você”), até funks maneiros com liberdade para os músicos (“Não vá”, com Jamil estilingando em seu solo, e “Nossa história de amor”, em que Robson deita e rola com suas frases à la George Benson). Reparem no vigor do diálogo entre metais, baixo e percussão em “Tudo vai  mudar”, e no timbre luminoso da guitarra de Robson em “Nosso adeus”. Uma pretensão eloqüente (“Doeu mais que doer”), e uma obra-prima de concisão e intensidade: só teclados (e cordas?), baixo, guitarra e bateria levam a baladaça “Está difícil de esquecer” até onde Tim sempre quis chegar: dor exposta e som como ele gosta.


A lenda de Midas não acaba bem. Além de quase ter morrido de fome, pois até a comida que tocava virava ouro, o rei viu-se envolvido, mais tarde, numa polêmica musical: durante um sarau de deuses, afirmou inadvertidamente que o canto de Pan e Mársias era mais doce que o de Apolo. Este, por vingança, fez crescer em Midas orelhas de burro. No nosso caso, as orelhas caem bem melhor para os críticos. Graças a eles, hoje Lincoln tem que se submeter a tarefas humilhantes, como arranjar o disco de André Gabeh, rouxinol egresso do Big brother da Globo. Melhor seria lavar o banheiro da gravadora.


Para se redimir, a Som Livre bem que poderia lançar de novo em CD o antológico “Robson & Lincoln”, disco que merece uma resenha mais detalhada. Essa parceria, que tirou do vermelho tantas contas bancárias, só se desfez em 1993, quando morreu Robson, ao que tudo indica pobre e esquecido por todos.

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