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Kraftwerk: O Pai da Criança

No princípio era o Ezequiel Neves, dizendo que só descobriu os Stones depois de 1970, e chamando de “rock-cocó” o som do Yes e do Genesis, e ignorando qualquer zumbido eletrônico que não viesse de David Bowie. Quente, frio. Eros, Tanatos. Stones, Kraftwerk. Na minha cabecinha simpatizante da esquerda festiva, o lero do auto-intitulado Zeca Jagger era a lei.


Um dia alguém me gravou, numa Basf C-60, o Radioactivity. Embora intrigado com a sensação de caos que de mim se apoderava durante a audição, enquadreio-os tacitamente como robôs alienados. Ainda preferia – na verdade, precisava do Deep Purple, e suas letras descrevendo trepadas dos integrantes em meio às turnês.


Não me lembro a data. Na TV, um jovem de mochila nas costas, ar melancólico. Uma casa abandonada no deserto, luz de crepúsculo. Trilha: Hall of Mirrors. Não lembro do que era a propaganda (jeans? tênis?), nem se tinha algum nexo com a letra: “even the greatest stars, dislike themselves in a looking glass”. Havia algum espelho na casa? Não me lembro.


1989: já em plena febre do “Pump the jam”, do Technotronic, tive o impulso de pedir emprestado a um amigo, sisudo professor da USP e fã maníaco do Kraftwerk, a discografia em vinil do grupo. Só aí é que vi, bestificado, quem estava por trás de todo pop eletrônico dos anos 80: giorgioacidnewwavenewageneworderhousehiphopandso-on. E de tudo que veio depois que os samplers embarcaram no “Trans Europe Express”, disseminando o benigno vírus techno-pop pelo mundo.


Agora, o Skol Beats: de fato, não podia haver um nome mais bem sacado. Sugere, pra mim, algo tipo “batidas eletrônicas geladas”, e acaba sendo uma indireta homenagem aos pioneiros alemães (da música eletrônica e da cerveja, claro). E assim como o Zeca Neves e os Stones, foi só quando o bonde já estava na esquina que fui atentar: os componentes da  “usina de som” não eram meros robôs disfarçados fazendo apologia do mecanicismo e do progresso tecnológico. Até pelo contrário: chegam a ser “naïve” de tão super-futuristas que parecem.


Bicicleta, automóvel, trem, rádio, calculadora, computador, telefone e, enfim, o “Man Machine”, o homem que virou máquina; e mais o “funken” ou, citando Arrigo Barnabé, as “diversões eletrônicas” do “Eletric Cafe”: sob a pulsação dessas várias máquinas, induzindo-nos a uma percepção exata do mundo exterior, partimos à imprevisível viagem pelo espelho / abismo humano, a “Autobahn”  interior. Caos e ordem se alternando no beat obssessivo e na repetição mântrica das melodias, gerando grata estimulação física, mental e espiritual.


No primeiro disco (1970!), a presença de instrumentos acústicos no meio do arsenal eletro-eletrônico brinda os ouvintes com improvisos e ousadias sonoras dignas de Hermeto Paschoal. A faixa “Vom Himmel Hoch” (No alto do céu) inicia com um ataque aéreo, vira um rock pauleira e finaliza com um diálogo bizarro entre sintetizadores distorcidos. Na época, Ralf Hütter e Florian Schneider, fãs de Schubert, buscavam trazer para os holofotes da cena pop seus experimentos norteados pelo vanguardista Stockhausen e pela música concreta. Depois, o pop prevaleceu sobre Schubert e Stockhausen, mas nada a reclamar.


[“O Google informa: a propaganda a pouco citada era do Starsax, sapato esportivo da Samello”.]


Reencontrei o professor sisudo, já então mestre da USP, no inesquecível show do Free Jazz 1998, no Jockey Club, SP. Aí, nada de futurismos e virtualismos: satirizam a si mesmos, “men-machine” vestidos de neon, e pilotando engenhocas saídas dos gibis do professor Pardal. Humor alemão, assim como o sarro sutil tirado dos franceses (ocupados pela Alemanha na segunda guerra) em “Tour de France”. Ou a versão em ritmo de “cumbia” para os hits do Kraft, pelo Señor Coconut, cognome de outro alemão “techno”, Uwe Schmidt.


Ponto pacífico, lugar comum: são os Beatles da música eletrônica. Melhor analogia seria: são o mesmo que Hitchcock foi para o cinema. E não só por conta da influência, mas também pela abordagem estética: exploração máxima dos recursos, hábil condução do tempo em prol da clareza e intensidade da narrativa, seja cinematográfica ou musical. No fim, Zeca, até o Bowie bebeu da fonte.

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