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Geraldo Azevedo: o primeiro solo

Nos anos 70, após quase todo o pessoal que ajudou a revolucionar a música brasileira ter sido encarcerado e exilado, a Jovem Guarda ter se esgotado e vários artistas brasileiros terem entrado num mato sem cachorro (sem conseguir sustentar o mito vindo da década passada, perderam-se em trabalhos infrutíferos), começavam a pipocar vários outros movimentos vindos de vários Estados do país. Vinha gente do Rio (Jorge Mautner, Jards Macalé), do Ceará (Fagner, Ednardo), Pernambuco (Geraldo Azevedo & Alceu Valença, em dupla), rockeiros de vários estados do país, sambistas cariocas, soulzeiros esparsos pelo Brasil, etc. Nenhum desses movimentos chegou a ganhar grande importância como movimento, e, para isso, várias explicações podem ser dadas – desde o fato de terem sido ofuscados pelo peso dos tropicalistas, até a própria existência da ditadura, cruel como nunca após a virada para os anos 70.


Geraldo Azevedo, por exemplo, era um desses caras certos na hora errada. Dono de um trabalho rico, que partia da MPB pré-tropicalista e das suas raízes pernambucanas, incluindo detalhes orquestrais e até eruditos, ele surgiu justamente em 1972 a partir de uma estranha dupla formada com o conterrâneo Alceu Valença – dupla essa que tinha hora certa para acabar, até pelas diferenças musicais-cênicas-comportamentais entre ambos, mas que pelo menos gerou um tenso e bom disco, pela Copacabana. Até então, Geraldo já tinha se aventurado pela carreira de desenhista industrial e arrumado uma malfadada associação com o xará Geraldo Vandré, perseguidíssimo pelos militares, e justamente no ano negro de 1968. O resultado foi prisão, afastamento da música e poucas gravações. O próprio disco com Alceu também não chegou a dar em muita coisa, embora tivesse aberto portas.


A Som Livre está relançando em CD – finalmente – o primeiro verdadeiro disco solo de Geraldo, homônimo, lançado em 1977. O disco teve alguma repercussão, graças à inclusão de algumas músicas do cantor-compositor em trilhas de novelas da Rede Globo. Anos antes do próprio Alceu virar o compositor preferido das novelas de realismo-fantástico de Aguinaldo Silva, o pai espiritual do escritor, Dias Gomes, já tinha utilizado os serviços de Geraldo em duas músicas de Saramandaia – apareceram outras canções também em O Casarão, Gabriela e até na primeira versão do Sítio do Pica-pau Amarelo. O disco, que trazia participações de vários músicos de estúdio conhecidos na época (entre eles os guitarristas Ivinho e Robertinho do Recife, o baixista Luiz Alves e o batera Robertinho Silva) e destaca a vozes de Alceu Valença e Elba Ramalho no coral em várias faixas, tinha o tipo de som que jamais seria considerado comercial no Brasil. Eram poucas as relações com o que estava sendo feito em música brasileira na época, pelo menos em termos de mainstream. Se no mesmo ano de 1977 Caetano e Gil passariam para a mistura de reggae e disco, Geraldo parecia costurar samba, choro, carnaval, nordestinidade (fica claro na abertura do disco, com o tema “Cadê meu carnaval”, adaptado do folclore angolano, mas bem ligado a uma espécie de samba nordestino), erudição (o disco traz uma faixa, “Correnteza”, em três movimentos, dos quais “Caravana”, que chegou a ser regravado por outros artistas, é o mais conhecido) e outros detalhes que, reza o velho clichê, são “deslocados de tempo e espaço”.


Composto por oito longas faixas, o disco acabou tendo duas espécies de hit. “Em Copacabana”, um quase-samba, quase-choro composto por Geraldo e Carlos Fernando fala sobre o impacto que o bairro havia provocado no pernambucano e ainda brinca com a peça O Rei da Vela e com os nomes de algumas lojas do Rio, como “Rei das tintas”, “Rainha das rendas” (sobra até para a famosa loja Rei da voz, empresa que anos depois se transformaria no que é hoje a empresa publicitária Artplan). A toada “Juritis e borboletas” fez parte da trilha de Saramandaia. A qualidade sonora do disco, anos depois, soa vergonhosa – em algumas músicas, parece que o som do CD foi tirado direto de uma cópia em vinil. Pelo menos o disco voltou às lojas, o que já é muito – a Som Livre, por sinal, bem que poderia continuar a investir em relançamentos


Geraldo Azevedo, em vários anos de carreira, teve uma trajetória cheia de altos e baixos: eram discos que saíam ora por uma gravadora, ora por outra, CDs gravados ao lado de amigos, sumiços, etc. Pior ainda aconteceu com outros contemporâneos seus, como Ednardo, que ficou anos sem gravar e hoje é mais lembrado por um hit único do que pelos vários discos que gravou, alguns deles recentemente reeditados em CD. Discute-se até hoje o que fez essa geração da música brasileira ficar tão solapada, uma vez que poucos deles consguiram manter uma carreira mais sólida – e mesmo esses poucos não ficaram impunes. O engraçado foi que nem Geraldo escapou do tão propalado “apadrinhamento” que rola entre músicos da MPB: o show de lançamento do seu primeiro disco contou com Gilberto Gil, que segundo o próprio Geraldo, “apareceu querendo participar da festa”. De resto, uma pena esse disco ter ficado tanto tempo fora de catálogo.


RICARDO SCHOTT, 28 anos, é jornalista, colabora com vários sites e edita o blog de música Discoteca Básica (www.discotecabasica.blogspot.com)

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