Entrevista com Alceu Valença, o “bruxo brasileiro”
Inúmeros ritmos genuinamente brasileiros misturados num caldeirão que é sobretudo, nosso. É isso que ao longo dos anos, Alceu Valença vem fazendo.
Descrito pela imprensa de forma que nem sempre corresponde à realidade, a simplicidade do cantor é atestada pelo excelente relacionamento com o público, que o mantém no “trono” há quase 30 anos. Público ao qual ele mostrou os quatro cantos do país, através do folclore, contribuindo assim para o desenvolvimento da imagem nacional. Do universitário que logo “caiu nas graças” da crítica nacional, para amadurecido instrumentista inusitadamente inovador da atualidade, muitas foram as mudanças: Como ele mesmo afirma, no início da carreira “gritava” mais, por que o momento, os conturbados anos 70, exigia. Atualmente, continua protestando, porém, de outra forma.
É sobre qualidade de arte, identidade singular de cada estado, carreira e vida pessoal que esse mestre da boa música brasileira fala na entrevista que concedeu exclusivamente à Central da Música antes do show “Acústico” realizado em Vitória, em 12 de agosto de 2002.
Feedback: Qual a diferença do “Alceu Valença” de 72 para o de 2002?
Alceu Valença: A diferença é que antigamente eu gritava mais. Era um outro momento político, havia a ditadura, então eu precisava gritar pela liberdade.
Feedback: No início de sua carreira sua família queria não que você fosse músico? Foi complicado se assumir como tal?
Alceu Valença: Foi um pouco, porque meu pai queria que eu me formasse em Direito para seguir a carreira dele, então foi meio complicado… eu sempre estava com o violão brincando, tocando e não pensava em fazer uma carreira profissional não. Até que eu terminei Direito, não quis seguir, tentei um pouco de Jornalismo, escrevi para o JB, porém eu não podia ter a carteira assinada, não tinha formação. Então deixei jornalismo e fui para o Rio de Janeiro tentar ser músico… foi meio sem querer.
Feedback: Você acha que atualmente com todo o glamour envolvendo a profissão de cantor, essa coisa do show business… o preconceito acabou?
Alceu Valença: Acabou. Depois que entraram os músicos com formação universitária dentro da MPB, acabou. Porque antigamente quase sempre não havia uma formação melhor, mais intelectual assim dizendo…
Feedback: O seu disco “Tô danado pra Catente” de 72 é uma parceria com Geraldo Azevedo e arranjado por Rogério Duprat. O que o artista ganha com a parceria?
Alceu Valença: Ela serve para você ter uma convivência com seu parceiro. Naquele momento, eu e Geraldinho estávamos começando uma carreira, então um abria porta para o outro. Depois cada um foi pra um canto, eu saí pra um lado, ele pra outro. Ainda somos muito amigos, mas acabamos não temos nem tempo de se ver, então parceiros meios são muito poucos porque eu não paro.
Feedback: E seu melhor parceiro, quem foi?
Alceu Valença: Acho que é um cara chamado Dom Troncho, que é lá de Pernambuco e que quando eu ia para o Recife, compunha comigo. Acho que é o que tem mais música comigo…
Feedback: Seu primeiro show, “To Danado Pra Catente”, foi um pontapé inicial para sua carreira. Você mesmo divulgou, a mídia apareceu lá e gostou… o que diferencia aquele espetáculo do que você apresentará hoje, ou seja, o show Acústico?
Alceu Valença: Ah… é totalmente diferente. Aliás, não é totalmente diferente porque eu apresento quatro shows. Tem horas que eu vou a um canto, com uma banda e uma sonoridade que vai remeter àquele inicio, mais ou menos. Aqui hoje, eu farei um show acústico, no carnaval é outro, o show de São João é outro… então o Alceu Valença são quatro.
Feedback: Você é amante de ritmos nordestinos como xaxado, frevo, côco, maracatu e outros, e procura fundi-los com sons universais como rock, música oriental e toada. Por que resolveu partir para as misturas?
Alceu Valença: Faço fusão porque ta aí… eu não faço nem muito isso do rock misturado. Às vezes é uma intenção, mas eu não conheço o rock… talvez seja uma atitude. A música oriental mourisca árabe, por exemplo, está na música brasileira de Pernambuco porque veio com os Portugueses. Já os fados, a música de viola, é uma coisa oriental porque os árabes estiveram na península ibérica, invadiram a Espanha e Portugal ha quatro séculos, então misturou tudo e no início do descobrimento todo esse manancial cultural veio aqui pra nossa terra, para Pernambuco.
Feedback: E falando em arte, como você avalia a arte atualmente produzida no Brasil?
Alceu Valença: A arte produzida no Brasil no que diz respeito a indústria do disco é muito mais feito sob “ponto de venda” do que “ponto de vista”. Isso tudo é o lixo cultural, por outro lado temos as músicas que vem de fora que estão sempre sendo divulgadas. A gente perde a chance de ser referencial do mundo, de fazer uma coisa diferente para ser cópia de americano… por outro lado quando quer fazer música brasileira faz uma coisa chula, brega, mal feita, ridícula, que é absorvida porque existem grandes negócios em torno de artistas e gravadoras…
Feedback: Qual a importância da valorização do regional?
Alceu Valença: A importância é fundamental, não para mim, mas para a terra. O Brasil é um país que é uma colcha de retalhos, dentro dessa colcha existem as diferenças entre cada região, cada estado, coisas diferentes dentro de um mesmo mapa, com uma mesma língua única e alguns aspectos que ligam as pessoas. Então essas regionalidades devem ser colocadas. O Espírito Santo tem o direito de ser o Espírito Santo e isso não quer dizer que não possa gostar do que vem de Pernambuco ou do Rio, mas deve gostar mais do que é do Espírito Santo. É muito mais natural gostar do que é dele do que do que é dos outros. Mas não existe política cultural no país e as pessoas que trabalham nessa área não conhecem o país nem sua cultura. Quero ver se o governo que vai entrar vai fazer alguma coisa nessa área. Era necessário que curadores, que entendessem de arte brasileira, tomassem conta desses cargos.
Feedback: A crítica comenta que você aprimorou sua técnica e que hoje seu trabalho vocal está muito mais lapidado que no início. Você concorda com isso?
Alceu Valença: Concordo. Se você está trabalhando o tempo todo em cima de uma coisa, ela vai melhorar.
Feedback: E como se deu essa evolução?
Alceu Valença: Naturalmente.
Feedback: Seu melhor trabalho?
Alceu Valença: Todos. O próximo.
Feedback: Segredo para excelente comunicação e relacionamento com o público?
Alceu Valença: Ser a pessoa mesma.
Feedback: E o próximo lançamento…. quando sai?
Alceu Valença: Mês que vem. Será um CD com músicas inéditas e traz um bônus de quatro regravações comemorando os trinta anos de carreira.
O público pode aguardar, com certeza, mais “poções mágicas” compostas por esse “feiticeiro”, que tem a coragem de difundir o que é nosso, tocar o que gosta e compor o que acredita. Apesar disso, Alceu conserva a humildade. Quando questionamos sua formação, ele respondeu que era autodidata e não considerava o que fazia, nada demais. Talvez, esteja aí, na dobradinha postura aliada a talento, o segredo do “feitiço”.