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Dr. Piranha: Olha aí o Samba-Rock, meu irmão!

O samba-rock está na moda: relançamentos em CD de supostos precursores, e releituras estilizadas de supostos inovadores. A expressão, todos sabem, nasceu em 1959, quando o baiano Gordurinha compôs e lançou “Chiclete com Banana”, logo depois eternizada por Jackson do Pandeiro, e revisitada mais tarde por Gilberto Gil. Daí até o drum’n bass, muitos nomes a lembrar. O que nem todos atentam é que sempre houve um movimento nos dois sentidos, ou seja, não são só alguns brasileiros metidos a moderninhos e a fazer “fusion”: os gringos também tentam, e às vezes conseguem transformar seu pop bate-estaca em sambalanços. Quando o desprestigiado tio Sam e outros menos votados pegam no pandeiro e no zabumba (e isso ocorreu, como veremos, até antes do toque do Gordurinha),  o samba fica assim:


O Compasso

A grosso modo, samba-rock é samba de branco. A fino modo, ele tem um braço enlaçado na bossa-nova que, assim como o Ben-Jorge, decompôs o samba de escola de samba nos vários ritmos que se entrecruzam na percussão. Só que, ao invés das acentuações africanas do atabaque (“sacundin sacunden”), ela chegou até a batida básica do tamborim (instrumento de origem árabe), que é a mesma do violão de João Gilberto. Ao ser tocada por americanos, a falta de malemolência, somada aos ecos magnéticos do baião que penetrou nos E.U.A. nos anos 50, faz com que eles se apóiem no 2o e  4o tempos do compasso, virando quase o 4/4 do rock, e assemelhando-se à salsa cubana. E olha aí  o samba-rock, meu irmão!! O sucesso mundial de “Desafinado”, com Stan Getz e Charlie Byrd, em 1962, pode ser explicado por essa simplificação, mas também porque, além de ter sido o movimento musical mais influente do século XX (o rock foi um movimento da pélvis, não da música), a bossa-nova se tornou uma apreciada dança de salão.

A Dança

Essa onda recente me refrescou a memória, e a idéia primordial que guardo do samba-rock também é de uma dança de salão, que esteve em voga por boa parte dos anos 80, em São Paulo. Mais precisamente em 1981, eu freqüentava a quadra da escola de samba Pérola Negra, e de lá saía com a própria, isto é, com a Ísis, uma negra gata que usava tranças rastafari, não por causa de Bob Marley, mas por ter visto numa capa do Sister Sledge. Ela me levava ao Chic Show, uma equipe de som que já conhecia de anos anteriores, quando promovia bailes disco-funk na sede do Palmeiras (!!), e onde Big Benjor e Tim Maia conquistaram seu público black da periferia de São Paulo. A equipe havia se mudado para um salão de Higienópolis, propagando a “nova dança”, que consistia em fazer com os braços os movimentos do rock, só que mais lentamente e de mãos dadas com o parceiro; e com as pernas, ao invés do zigue-zague dos joelhos, os movimentos básicos do samba. A cada 6 tempos, ou de acordo com o breque da música, fazia-se rodopiar o(a) partner, ida e volta, e vice-versa.  Ísis, além de bela, era extremamente paciente ao tentar ensinar aquilo que pro seu corpinho mignon era simples, mas que para alguém que olhou para a Medusa quando criança, era um suplício. No samba eu me virava, mas dançando sozinho, e na matemática dos passos de dança só sei contar até 2.

As Músicas

O repertório desses bailes era bastante eclético, e ficava maravilhado em ver tamanha variedade musical circulando por um salão freqüentado basicamente por pessoas da periferia. Para minha felicidade, já no final dos anos 80, reencontrei quase todas aquelas pérolas numa coletânea da Polydor, entitulada “Som de Valente” (provavelmente uma homenagem aos freqüentadores), encontrável ainda nos sebos especializados do centro paulistano. Imaginem dezenas de casais, vestidos em combinações ousadas de cores primárias , rodopiando ao suingue do organista-Hammond de jazz Jimmy Smith (“The Cat”, “Got My Mojo Workin’”), e logo em seguida com o obscuro Willy and the Poor Boys  (“Can you hear me”, um plágio da libidinosa “What I’d Say”, de Ray Charles). Alguns deixavam a pista quando rodava um tema instrumental do Style Council, grupo new-bossa do ex-punk Paul Weller (“Me Ship Came In”), mas com Chris Montez, uma espécie de Chet Baker do iê-iê-iê latino (“The More I See You”), ao lado de Grace Jones (“La Vie en Rose”, que não está nesse disco), era hora de falar bobagem no ouvido da garota.

Havia também as músicas cujo título já diz tudo: “Soul Bossa Nova”, com Quincy Jones, e “Afrikan Beat”, do maestro alemão Bert Kaempfert, que fez um tremendo sucesso no Brasil em 1963, mesmo ano do “Chove Chuva” de Jorge Ben. Aí, só ouvindo pra não falar que estou mentindo: a batida no violão é praticamente a mesma. Numa versão-carbono, no mesmo ano, da Orquestra Brasileira de Espetáculos, isso fica ainda mais evidente, e não duvido nada se foi o próprio Jorge quem tocou aquele violão meio rasqueado meio reggae . Só como curiosidade, Kaempfert foi o produtor, dois anos antes, das gravações dos Beatles em Hamburgo.

Pra sacramentar a conjunção astral, “Afrikan Beat” era a música que esquentava o baile: seu andamento mais rápido permita aos dançarinos os malabarismos típicos do rockabilly, enquanto uma frase simples repetida no trumpete mais os violinos flutuantes descortinavam sonhos em suas cabeças. Na sequência, vinha “Tequila”, na gravação original do The Champs. Depois, a surpresa: Perez Prado e sua orquestra! Nos anos 60, o rei do mambo gravou um disco adaptando seus grandes sucessos (“Mambo Jambo”, “Patricia”, “Mambo n. 8”) ao ritmo do rock, com um decisivo violão “sacundin”  fazendo o ritmo. Não sei se, na época, chamaram o delicioso resultado de “mambo-rock”, mas o fato é que virou coqueluche no Chic Show. De vez em quando, no meio dessa seleção, entrava “Rock Your Baby”, um sambinha safado de George McRae e KC and the Sunshine Band, apelidada de “melô do puladinho”.

Voltando ao “Som de Valente”, está presente também a versão com sotaque americano para “Mas que Nada”, com Sérgio Mendes e Brazil 66. Não conseguia entender porque o pessoal preferia essa versão exótica à original. Fiquei com cara de tacho quando, tempos depois, o Benjor declarou que achava essa gravação melhor que a dele própria. Não tinha reparado nas claves que marcavam o tempo… Achava engraçado também quando eu perguntava a Ísis se gostava de algum grupo de rock, e ela respondia, convicta: “rock, pra mim, só Jorge Ben”.

Finalmente, há uma música nessa compilação chamada “Tweedle Dee” (personagem de Alice, lembram?), com a cantora branca Georgia Gibbs. Essa gravação foi feita meses depois da original, em 1954 (em pleno parto do rock!), com a cantora negra La Vern Baker. Em ambas, orquestra, sessão rítmica e um agogô repetem à exaustão o riff de abertura de “Aquarela do Brasil”;  só que na original, o ritmo é mais lento e marcado, e aí me parece se revelar a diferença entre o samba-funk e o samba-rock, que é mais apressado.

Mas o samba-funk de verdade só foi gravado 9 anos depois (1963, de novo): “The Sidewinder”,  com o pistonista Lee Morgan, que logo tomou conta das jukeboxes da América, embora tenha passado em branco pelo Brasil. O rótulo se aplica com mais propriedade se considerarmos que todos os músicos dessa gravação vieram da vertente “funk” que imperou no jazz dos anos 50, na verdade a primeira vez que essa palavra foi empregada com sentido musical. Destacam-se o baixista Bob Cranshaw e o baterista Billy Higgins, que se tornou um especialista nesse groove, participando de outras gravações no mesmo estilo, como “The Turnaround”, com Hank Mobley, e “Watermelon Man”, com Herbie Hanckok. Nesses casos, os metais reforçando o 2o e 4o tempos é  quase um “breque”, e muitas vezes vira “breque” mesmo: é a deixa para girar a parceira.

O Sonho

No meio de toda essa diversidade, acabei tendo o sonho de ver todo mundo dançando ao som de “Limbo Jazz”, gravada também em 1963 por nada menos que Duke Ellington e Coleman Hawkins. O limbo foi outra dança da época, uma desaceleração do twist, que por sua vez era um rock’n roll desacelerado. Os passos do samba-rock cabiam perfeitamente no limbo. Contei meu sonho a Ísis, que ouviu, gostou e, sendo chegada dos DJs da casa, levou até eles uma fita. Na semana seguinte, em que o “Limbo Jazz”, aprovado pela cúpula, seria apresentado ao público, quis o destino (e os vizinhos) que o local fosse fechado pela prefeitura. Fiquei, como lembrança, com o LP do Perez Prado, sem capa, todo riscado mas tocando bem, o qual havia “tomado emprestado” do DJ dias antes da catástrofe.

Quanto à Ísis, só a revi um ano depois. Certa noite, quando o Trio Elétrico de Armandinho passava em frente ao MASP, em plena Avenida Paulista, trazendo a turba atrás de si, eu no meio da turba, ela na calçada com um novo namorado. Não se sabe como, ela me focaliza na multidão, larga o sujeito falando sozinho, atravessa a turba e me abraça com fervor. Do samba-rock ao frevo-rock, dessa vez fui eu quem  ensinou a dança. 


Ednaldo Calahani


PS musical: outros samba-rocks disfarçados para ouvir e conferir: “O Calhambeque”, na versão original de Roberto Carlos; Pata Pata, com Miriam Makeba; e Song for a Guy, com Elton John.

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