Dr. Piranha: Fagner X Caetano: a luta do século
A rivalidade mais famosa da música brasileira foi entre Emilinha e Marlene. Na porta da rádio Nacional do Rio, multidões de fãs das duas cantoras trocavam insultos, e muitas vezes se engalfinhavam para decidir quem era a melhor. Só que elas, na verdade, eram bem amigas, e se divertiam com a disputa que, enfim, só fazia aumentar a popularidade de ambas.
Bem diferente foi a rinha real entre dois galos bravos da MPB, que quase chegou às vias de fato, e na qual os fãs pouco se envolveram. Retomá-la aqui tem o objetivo de refrescar-lhes a memória, ainda que com o fogo dessa contenda cujos estilhaços se fixaram no nosso inconsciente musical coletivo.
Tudo começou em 1972, Médici no governo, quando Fagner, posando de anti-João Gilberto, lançou sua primeira gravação (“Mucuripe”) no Disco de Bolso do Pasquim; curiosamente, do outro lado vinha Caetano, com “A Volta da Asa Branca”. Logo em seguida, pela antiga Philips, saiu seu primeiro LP, apadrinhado por famosos como Chico e Elis, e logo eleito “favorito do verão” pelo circuito alternativo carioca. Foi um pisão no calo dos baianos, que logo fizeram valer seu status quo na mesma gravadora, reavivando então uma rivalidade geográfica do tempo do império. Nessas, vendo-se boicotado no circo armado, Fagner foi passar uma temporada em Paris, só voltando a gravar em 1975, na Continental, o “Ave Noturna”, mais experimental ainda que o primeiro disco.
No ano seguinte, o amigo Belchior, também pela Philips, estourou com seu LP “Alucinação”, atingindo marcas de vendagem e popularidade nunca alcançados pelos baianos. Isso não foi nada, comparado com a menção explícita a Caetano nas letras: o “antigo compositor baiano”, que dera “a idéia de uma nova consciência”, e que agora estava “em casa, guardado por Deus, contando seus metais” (em “Como Nossos Pais”). A meu ver, era como um repente, um desafio à pasmaceira e omissão política que exalava dos ex-tropicalistas, mas não foi assim que eles entenderam a coisa. Reagiram, de novo, por baixo do pano, e Belchior, mesmo com o estrondoso sucesso comercial, teve que se mudar para a WEA.
Fagner, filho de pai sírio e fiel às amizades, não se conformou com a nova puxada de tapete, e não deixou barato nas entrevistas: disse que Caetano “já era” (uma expressão comum na época), e que devia ter ficado em Londres. Caetano, cujo fraseado vocal e traços físicos também não disfarçam a quota de sangue sarraceno que lhe corre nas veias, chamou Fagner de “mau-caráter”. O clima pesou, e Chico, amigo comum, tinha que ter cuidado em não convidá-los para a mesma festa. Bem que ele tentou jogar água na fervura, mas o racha já estava feito.
A verdade é que o Caetano pós-Londres estava “numas de deixar rolar”. Depois de fracassar com o genial “Araçá Azul”, gravou, em 1975, dois belos discos que se complementavam (“Jóia” e “Qualquer Coisa”), recebidos pela crítica com bocejos, e que também venderam pouco. Quando emergiu o então chamado Pessoal do Ceará (Ednardo, com o Pavão Mysteriozo, de 1974, Fagner e Belchior), sua maré criativa estava em baixa. No episódio da briga, alguns críticos tomaram o partido dos cearenses. Aí, em 1977, Caetano lançou “Bicho”, exaltando a moda “disco” que aportava no Brasil, e veio o bombardeio: em plena ditadura, que não largava a rapadura, onde já se viu louvar a alegria! Era o tempo das “patrulhas ideológicas”.
Para Caetano, polemista arguto, não foi difícil dar olé na habitual estreiteza mental da crítica. Nas entrevistas e shows desse disco e do seguinte (“Muito”), ouvimos sua voz de trovão em discursos irados. O problema é que ele aproveitou o súbito poder conquistado para uma revanche com seus desafetos. Elis, que sempre gravou Caetano em seus discos, mas que fez coro contra o “Bicho”, nunca mais foi perdoada (vide o modo jocoso como é referida no livro “Verdade (??) Tropical”). Fagner, por seu turno, teve que a partir daí se desdobrar para retomar seu espaço na mídia e no mercado. Ironicamente, a partir de “Noturno” (da novela global Coração Alado, em 1980), ele, cujas ambições não o faziam se contentar em ser mais um “maldito”, se tornou um grande vendedor de discos. Caetano, mesmo estando empatado na quantidade de temas de abertura para novelas, só veio a ter um êxito comercial notável recentemente, com a pérola brega “Sozinho”, de Peninha. Diz Rita Lee que ele sempre viveu do sucesso da butique da irmã, Betânia. Por outro lado, sua “fina estampa” lhe garante um cachê bem maior para shows.
O livro “Nada será como antes”, de Ana Maria Bahiana (editora Civilização Brasileira, 1980), traz entrevistas elucidativas, da época, com as duas partes. Na matéria de Caetano, Ana cita que chegou a considerá-lo um “deus”, na época em que ela precisava de deuses. Também tive meu tempo de achá-los “deuses”, ele e o Fagner, agora não mais. Só que a grande maioria dos críticos, depois da fragorosa derrota diante do “Bicho”, adotou uma postura de passividade bovina, outorgando comodamente a Caetano a incumbência de traçar, ao seu bel-prazer, a “linha evolutiva da MPB”, como ele mesmo gosta de falar. Assim, Barão Vermelho, Djavan, Carlinhos Brown, RPM, Lenine, Marina, Chico César, Chico Science, Arnaldo Antunes, a despeito de seus méritos, só passaram a ser “bons” depois do crivo do baiano. Na outra face, ai daquele que, em qualquer época, tenha desagradado o menino de Santo Amaro da Purificação. De Vandré a Makalé e ao maestro Júlio Medaglia, todos levaram sua alfinetada vudu. Luiz Gonzaga, outrora referencial da Tropicália, depois que gravou dois vigorosos discos com Fagner, só mereceu citações lacônicas. Até Gil deve ter tomado seu puxão de orelhas, depois da parceria com Belchior em “Medo de Avião n. 2” (1980). Ruy Castro, te cuida…
O que mais me incomoda nisso tudo é que o Pessoal do Ceará, um grupo tão ou mais criativo que o da Tropicália, e que inclusive levava adiante a proposta tropicalista, foi posto pra escanteio por conta dessa bravata. Mesmo aqueles cujo som revela cristalinamente sua influência (caso de Lenine e Chico César), parecem ter vergonha de admiti-la em público. Num especial da MTV, comandado por Gil, sobre a música de todas as regiões do Brasil, pintaram de Carla Perez a Tom Zé, outro que teve o tapete puxado por discordar do clã baiano. Porém, assim como no site “Expresso 2222”, nenhuma vírgula de referência a Fagner, Ednardo e Belchior (sem falar nos músicos como Robertinho do Recife e Manassés), artistas que tiveram e tem sucesso comercial sem nunca abrirem mão da qualidade e da inventividade. Faltou-lhes habilidade política para se fixarem como medalhões da MPB? Pode ser. Ednardo, que nunca entrou diretamente na briga, mas que acabou recebendo as balas perdidas, dá “bananas pra todo esse auê”, em “Tecer Novo Mundo”, do disco “Libertree” (1984). Talvez sábio seja ele, ou Luiz Gonzaga, para quem “na dança do cossaco, não fica cossaco fora”.