Do paraíso à perdição com o Silverchair em S.P.
Uma febre como há muito tempo eu não presenciava tomou conta do Credicard Hall no último dia 15. Era a única apresentação do Silverchair em São Paulo, e o clima antes do show não poderia ser melhor. Uma fila enorme horas antes da abertura dos portões, camisetas estampando os garotos de ouro da Austrália por todo lado e uma unidade móvel da rádio 89FM entrando ao vivo direto do público formavam uma expectativa típica de grandes espetáculos de rock n roll.
Depois de tocar no Close Up Planet, em 1996, abrindo para ninguém menos que os Sex Pistols, e no Rock in Rio 3, em 2001, antes do Red Hot Chilli Peppers, finalmente a banda australiana veio ao Brasil fazer shows como atração principal. E mostrou uma popularidade tremenda. Pouco mais de uma semana antes do espetáculo de Sampa os cerca de cinco mil ingressos se esgotaram. Nada mal para um show em que a pista custava 80 reais – um terço do salário mínimo nacional.
A expectativa era tamanha, que teve gente na fila desde o dia 12. Isso mesmo, as primeiras pessoas dormiram em frente à casa de espetáculos três noites, sendo que na madrugada do dia 15 a movimentação já era intensa, apenas para ficar alguns metros mais próximo do grupo. É verdade que boa parte dessa “quase beatlemania” se deve muito ao líder Daniel Johns e sua pinta de galã.
Grande aperto e constante empurra – empurra marcaram a metade da frente da pista do local até a histeria tomar conta principalmente das meninas (cerca de 50% do público) com a entrada da banda no palco. No início do show, o Silverchair mostrou que se tornou um grupo extremamente diferente daquele que apareceu ao mundo em meados dos anos 90. Aquele power trio pesado e totalmente influenciado pelo movimento grunge virou uma banda com arranjos bem trabalhados, músicas extremamente melódicas e um som grandioso.
Nada menos que dois músicos contratados ficaram responsáveis apenas pelos arranjos agora marcantes no som da banda. Até a metade da apresentação, o Silverchair tocou um repertório quase exclusivo de músicas do disco novo, Diorama. Canções longas, bem trabalhadas, bem diferente daqueles três acordes do punk e do grunge que a banda namorava no início de carreira. Esse fato causou uma pequena desaprovação de alguns no público, mas não evitou uma atuação brilhante.
Em “Emotion Sickness”, a segunda do show e única do aplaudido disco Neon Ballroom nessa primeira parte da apresentação, o grupo fez uma performance de mais de dez minutos, com direito a Daniel incitar um mantra com os braços abertos e jeito de messias. Os singles de Diorama, “Without You” e “The Greatest View”, levantaram a platéia e mostraram uma banda entrosada, apesar de estar no início da turnê mundial. Outras belas faixas do último disco, como a aplaudida “Across The Night” e “Luv Your Life”, também estiveram presentes nessa primeira parte e mantiveram a qualidade lá no alto.
Se a demora para tocar os vários sucessos do passado começava a preocupar os fãs mais antigos, a segunda metade do show foi um oásis. Tudo começou com a execução das duas melhores baladas do Silverchair: “Ana s Song” e “Miss You Love”. O público foi ao delírio e o coro soou uníssono por todo local.
As duas foram o início de uma seqüência de cinco sucessos emendados na seqüência poucas vezes presenciada por este que vos escreve. “Freak”, que fez toda a pista sair do chão, “Anthem For The Year 2000″, envolta num coro enorme, e “The Door”, em que o vocalista fez o público prometer que agitaria como nunca antes o fizera (e este cumpriu a promessa), fecharam a apresentação. Quer dizer, faltava o bis, é claro.
A empreitada estava praticamente ganha com grande êxito. Só faltava os garotos voltarem ao palco, tocar pelo menos uma das duas primeiras músicas que os levaram ao topo das paradas, “Tomorrow” e “Israel s Son”, e fechar uma apresentação sensacional, forte candidata a melhor do ano. Mas eles conseguiram estragar tudo. Parece que era outra banda que voltou para o bis e passou a fazer um som sem inspiração. Daniel primeiro quis se meter a Axl Rose ao tocar piano na volta, e depois se perdeu completamente. Talvez influenciado pela histeria feminina à sua frente, o vocalista e guitarrista tirou a camisa e passou a rebolar constantemente para o público.
As garotinhas que estavam no Credicard Hall adoraram conferir o piercing no mamilo (!?!) e o peito definido do músico, mas, estranho, não era ele o anoréxico e doente de algum tempo atrás? Vai entender … O fato é que essa idolatração à imagem não combina com rock n roll. O som acabou ficando em segundo plano, e a ousadia que eles demostraram ao deixar os sucessos para a segunda metade do espetáculo e a qualidade do resto foram por água abaixo.
O que poderia ter sido um grande show de rock n roll pode ser dividido em três partes bem distintas: um começo ousado, grandioso, que merece muitos aplausos; uma segunda parte maravilhosa, com muitos sucessos tocados por músicas inspirados; e um final lastimável, compatível com a apresentação do The Calling (lá vem berros de fãs estéricas) por aqui ano passado. Uma pena, mas ficam as ótimas impressões da banda ao vivo tirando o fatídico bis.
Muito rock e pouca cidadania
Diante de um ótimo show do grupo paulista Ira!, o segundo evento do Projeto Rock Cidadania foi marcado por uma tremenda falta do segundo item que nomeia a iniciativa. Enquanto a grande maioria das cerca de 20 mil pessoas que compareceram ao Boulevard São João, no Centro de São Paulo, no último dia 18, curtia o som, um grupo se dedicou a praticar atos de vandalismo. Se subir em árvores e postes até é aceitável em um grande show gratuito de rock, destruir banheiros públicos e quebrar vidros da janela do grandioso prédio central dos Correios não é admissível de forma alguma.
Logo no começo da apresentação do Ira! várias pessoas que se localizavam em cima dos banheiros começaram a destruir madeiras da construção dos Correios, o que culminou na destruição das vidraças mais tarde. Consciente do intuito do Projeto, o vocalista Nasi até chegou a repudiar a ação e pediu para que parassem com aquilo, mas, ao final do espetáculo, o clima de destruição se intensificou. A grande massa que assistia a tudo da parte debaixo desaprovou veementemente a ação dos marginais, o que até chegou a causar um começo de tumulto entre algumas pessoas do público.
Se a cidadania passou em branco para alguns na multidão, o rock compareceu para todos, e de forma exemplar. Num show repleto de hits, assim como o do Paralamas, mês passado, que abriu o Rock Cidadania, o Ira! presenteou o público paulista com música da melhor qualidade. A abertura com os clássicos “Gritos na Multidão” e “Dias de Luta” mostrou que a temperatura seria alta. A platéia acompanhava num coro marcante, que se intensificou em “Flores em Você”, “É Assim Que Me Querem” e “Envelheço na Cidade”.
Os singles mais novos, como “Entre Seus Rins”, “Vida Passageira” e “Bebendo Vinho”, provaram que a banda envelheceu, mas continua com habilidade para fazer o bom e velho rock n roll de qualidade. Falando nisso, a faixa “O Bom e Velho Rock n Roll”, do último trabalho dos caras, foi cantada num coro tremendo. Curioso perceber a quase catarse provocada pela canção que nem mesmo chegou a tocar nas rádios.
No bis, o Ira! mostrou que sabe muito bem fazer belos covers. Se na inesperada “Foxy Lady”, de Jimi Hendrix, o guitarrista Edgar Scandurra mostrou porque é considerado o melhor do Brasil em seu instrumento, em “Teorema” a banda fez jus à teoria de que fazer cover da Legião Urbana é um tiro certeiro para bandas de rock nacional.
O segundo evento do Projeto Rock Cidadania foi um sucesso em termos de rock n roll, já a cidadania … Isso é uma pena, pois apenas dá fôlego ao estereótipo enganoso e ultrapassado de que esse estilo musical é sinônimo de vandalismo, pessoas alienadas e que adoram praticar o mau.