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Como fazer oficina de música tocando teclado do computador

- O que você toca? – pergunta uma professora de Macaé, RJ.

- Hum….teclado… do meu computador !!!!! – respondo brincando.

Malícias à parte, é certo que, embora meus dedinhos peçam, nem ando lá tocando muito teclado. No entanto, respondi orgulhosamente à professora de piano de Macaé, Rio de Janeiro, que sou jornalista e só toco o teclado do computador. Só. Lembro que na minha infância tinha um pianinho, uma guitarrinha e um saxofone. Todos de plástico com teclinhas coloridinhas, mas não passei de uma amadora infantil. Para minha infelicidade, eu não pedi e nem papai me colocou pra aprender algum instrumento erudito quando tinha lá meus seis anos de idade, como fez o papai da Crista, por exemplo. Mas graças ao nosso “quase famoso” jornalista Abonico Smith – jovem, porém com 15 anos de estrada jornalística no currículo – pude me unir aos cabeludos violoncelistas e às “ripongas” dançarinas de fandango. Uma garota “emepebística” como eu se inscreveu no curso História do Rock durante a XXI Oficina de Música de Curitiba e entrou pelo pátio do Colégio Estadual do Paraná de cabeça erguida devidamente encrachazada. 

Porém, o fato de não entrar no colégio levando algum instrumento nas costas não me tira o direito de ser musicista na visão daqueles sortudos que dão de cara comigo! Logo os uruguaios, argentinos, cariocas, curitibanos, os doidões me cumprimentam, enquanto na mesma fração de segundo tentam intuir se eu toco piano, bateria ou se carrego o meu mini-triângulo e um apito indígena no bolso do meu casaco. Ainda esta: posso ter muito bem deixado meu acordeão vermelhinho repousando lá na sala dos instrumentos, como aquela instrumentista e cantora de um grupo cavernoso daqui. Respiro fundo e passo ao lado dela, no corredor. Não consigo encontrar a sala onde o Guinga mostra seu talento e nem ouço a sanfona do Toninho Ferragutti. Só o sapateado das dançarinas de fandango. Umas meninas que se vestem com saia indiana e dançam fandango e cantam alto. Mas quem há de desconfiar se eu não guardo o segredo da minha musicalidade no meu mochilão de couro, carregando lá no fundo uma chaleira, hein? Ah…pois é…esqueci. O albino Hermeto Pascoal não está ministrando oficina de como tirar som de cano. Apenas veio para namorar e de quebra fazer o show de encerramento do evento. Em todo caso, eu vivo um certo realismo fantástico.

“O bruxo enviuvou e está apaixonado por uma donzela, simpática, vinte e três. Assim como muitos gênios à frente de seu tempo, ele chegou com seus cabelos, bigodes e barba branca fosforescentes há duas semanas. Veio para namorar a sonoridade da capital e principalmente sua namorada, que parece viver por aqui, toca viola e canta um “sarará si si”. Bem… sobre aquele seu fiel escudeiro que não larga da sua barba e costuma carregar a todos os cantos uma escaleta azul, contrastante com o tom da sua alma cinza… ah… esse cara ninguém viu, não.”

Que bom.

Na terça o céu acorda de um azul discreto e o dia já começa diferente: levanto da cama com os dois pés no chão e, vejam só, como cereal, flocos de milho. Ando cinco ou seis quadras. Antes recebo uns cumprimentos no meio do caminho. Não sou mal-educada. Tampouco conheço os engraçadinhos, portanto não respondo. Atravesso a avenida e chego ao colégio mais cedo do que a maioria. Ainda precisava me inscrever pra oficina, uma vez que havia perdido a aula de segunda.

No dia anterior, encontro o Abonico numa palestra do artista gráfico Elifas Andreatto:

- Você não foi fazer meu curso, hein!

- Foi mal estou sem grana…

- Mas vale a pena, não sei quando vai ter outro…

- Mas eu não me inscrevi…

- Aparece lá tal hora e tenta….

Tal negócio, você paga, você faz. Procedimentos realizados. Chegam Abonico e sua caixa com dezenas de CDs (do seu acervo de 4 mil), a Crista e a professora de piano que diz “faço uma troca com meus alunos: eu lhes ensino piano e eles, rock´n´roll”. De quarta à sexta o mesmo trajeto, mas não o mesmo calor. “Curitiba é sempre assim?”, pergunta a professora na sexta-feira. “É pior…há dias em que a temperatura cai de 30 pra 10 graus. Que violência.”

Todos os dias, um micro-ônibus nos leva às nove da matina rumo ao Sesc da Esquina, onde nos encontramos com outros novos colegas. Abro meu caderno de anotações e vou apontando: ah…esse é o Ray Charles e o R&B, o doo woop dos Platters, o revival folk de Bob Dylan, o twist de Chubby Chaker, o calipso de Harry Belafonte, o pop pré-fabricado de Paul Anka, o início da música industrial, o pop sinfônico, a invasão britânica que salva o rock, os mods, a surf music dos Beach Boys, o underground, o soul, a Motown, o psicodelismo, os grandes festivais, o hard rock do Led Zeppelin, o nü metal, o funk metal, o grunge do Nirvana, o reggae, o progressivo do Pink Floyd e Flaming Lips, o glam de um andrógeno David Bowie e seu Ziggy Stardüst, o rock de arena do Queen, a disco music de Donna Sommer, o protesto dos rappers, o punk, o punk, o punk, o indie rock e todo o cenário alternativo e a música eletrôncia.

Logo que entramos em Beatles, lembro da minha adolescência. Frase que pode tanto sair de uma boca enrugada como de uma com aparelhos nos dentes, que é o meu caso. Móvel. Entre uma brincadeira de boneca e uma jogada de videogame, eu ia acompanhando as letras no encarte e mal sabia, ao certo, o que estava por trás delas: Lucy in the Sky With Diamonds… LSD? O quê? Rezava pro Paul McCartney não morrer antes de assistir a um show dele e um dia ir pra Liverpool adentrar o clube caverna. Enquanto isso não era possível, deleitava-me com as histórias da revista Revolution.

Deixei minha “minoridade” pra trás, fico questionando John Lennon, invejando aquele amor explícito por Yoko Ono, Love is Real, será John? e acompanho a carreira solo principalmente de John e de Paul, este com os Wings. Logo que lançaram o Anthology ouvia repetidamente My Boonie e No Reply e agora tento acabar minha coleção de vinis do quarteto britânico. Dia desses encontrei o álbum branco, mas sem o encarte, um pôster maravilhoso. Que pena. A questão é ter grana pra pagar tudo isso, assim como a professora de piano ficou fascinada por uma coleção sobre a história do jazz em DVD (aquela que passou na GNT), temendo comprá-la e ser enforcada pelo cheque especial.

Mas vale o sacrifício, e como valeu a minha trilha sonora do Forrest Gump, assim com a de Almost Famous deve ter seduzido outros tantos de adolescentes desta geração. Dois discos certeiros na caixa do Abonico. Fui assistir ao filme e no dia seguinte estava pagando uma fortuna pela trilha sonora, dois CDs históricos. Isso em 1994. Eram as músicas que eu ouvia e nem sabia naquela instância, por exemplo, o que significavam os Doors ou um Bob Dylan, o mesmo Bob que apresentou maconha aos Beatles. Maconha… drogas… triste pensar que, a cada menção de banda durante as aulas, constatava que boa parte delas perdia um integrante, morto de overdose. Com exceção ao Jimmi Hendrix. Fiquei imaginado o cara sufocando com o próprio vômito. Cruzes. David Crosby chegou a comentar, ou lastimar, no fim dos anos sessenta, a consciência que se tinha quanto à luta pelos direitos civis, quanto ao amor ser melhor que o ódio, mas não quanto aos estragos provocados pelas drogas (e olha que os excessos só aumentariam nos anos 70), tanto que vários artistas, hoje, assumem bandeiras antidrogas, como a vocalista do Concrete Blonde. Porém, sejamos realistas, começo do século e os heróis ainda morrem de overdose.

O fato é que de tanto ouvir sons diferentes, durante quatro dias de curso, já começava a perceber detalhes que não seria capaz de notar antes, como uma certa semelhança entre o hit gravado por aquela “girlsband” brasileira e um rap do Sugar Hill Gang. O professor repete e os colegas atrás de mim: o pior é que lembra mesmo. Viagem minha? Ora, ora, não uso artifícios! Obviamente a língua do rapper é o inglês, mas a rapidez da mensagem lembra sim. Assim como eu sei que o nome do Radiohead vem de uma música dos Talking Heads, assim como Born in the USA é do Bruce Springsteen e não do Tom Petty, assim como existem “n” Heartbreakers, que o trip hop da Bjork pode ser bom pra caramba, mas a voz dela ainda não me soa bem, que existem muitas definições para um mesmo som. Que ouvir rock´n roll é essencial e o nosso ministro rastafari da cultura sabia disso quando era um doce bárbaro em 1976:

“Roque é nosso tempo, baby
Rock´n roll é isso
Chuckberry fields forever
Os quatro cavaleiros do Apocalipso

O Apocalipso
Rock´n roll capítulo um
Versículo vinte, século vinte
Século vinte e um”

Oficina vinte e um. Que venha a próxima. E que eu aprenda piano, senão choro.

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