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Coluna Tudo Velho: Sonhos e memórias de Erasmo Carlos

A caixa Mesmo que seja eu, reunindo as “obras completas” do Tremendão na antiga Philips (ou Polydor, ou PolyGram, ou sei lá o quê) pode ser um sonho, ou um pesadelo… depende do seu ponto de vista. É uma maravilha ver os melhores discos do cara relançados, junto a uma biografia detalhada e bem feita (pelo caçador de canções perdidas, Marcelo Fróes), mas, realmente, duzentos e poucos reais pesam no bolso de qualquer um – mesmo que o cara seja muito fã. Só que como isso não tem jeito mesmo, vamos ao que interessa: a caixa é uma maravilha. Quem estava acostumado a escutar músicas como “Largo da segunda feira”, “Filho único” e “Meu mar” em coletâneas, vai ficar espantado com a masterização dos discos. Longe do som de fita velha encontrável nas coletâneas estilo “série isso”, “série aquilo”, a qualidade sonora está no nível dos relançamentos internacionais.


Mesmo que seja eu (nome de um hit dos anos 80, regravado depois por Marina Lima) ajuda a perpetuar a obra de um artista que nunca teve seu valor totalmente reconhecido. Enquanto Roberto Carlos tinha toda a sua discografia nas lojas, Erasmo teve que esperar quase duas décadas para ver a parte mais valiosa da sua discografia lançada em formato digital – e mesmo assim os discos da época da Jovem Guarda, que já até tinham saído em CD, sumiram das lojas. Pouca gente lembra disso, mas Erasmo foi um dos responsáveis por trazer o mundo cor-de-rosa da Jovem Guarda à realidade, jogando-a no mundo da MPB, do soul, do hard rock e da psicodelia. Poucos artistas que tentaram fazer essa fusão – entre eles estavam Silvinha, Eduardo Araújo, Golden Boys, Leno, Wanderléia – sobreviveriam no mercado após os anos 70, e alguns deles seriam forçados a se jogar de vez na seara brega. Mesmo que o trabalho de Erasmo tenha tomado uma direção mais pop nos anos 80 – época em que o rock nacional e os arranjos grandiloqüentes de Lincoln Olivetti dominavam a cena, cada um do seu lado – muito do que ele fez em discos como Mulher (1981) e Amar pra viver ou morrer de amor (1983) vem daí.


O disco Carlos, Erasmo…, de 1971, com Erasmo acompanhado dos Mutantes, dos Diagonais (grupo vocal do qual Cassiano havia feito parte) e de músicos como Lanny Gordin, escancara essas mudanças, trazendo alguns dos momentos mais criativos do início do rock nacional. Havia o pós-tropicalismo de “De noite na cama” (de Caetano Veloso), a melancolia de “Masculino, feminino”, a lisergia de “Agora ninguém chora mais” (de Jorge Ben) e de “Em busca das canções perdidas nº2″ (que fala de um lugar “onde as cores têm som/onde as flores caminham/e as dores não entram”), o soul de “Mundo deserto”, etc. Já Sonhos e memórias (1972), um dos melhores da caixa, inovava por ser um dos primeiros discos conceituais da MPB, com músicas interligadas por gravações caseiras e trechos de filmes – além de trazer uma série de canções samba-soul-rock perfeitas, como “Mundo cão” (um dos mais belos momentos da MPB-rock setentista), “Meu mar”, “Sorriso dela”, a benjoriana “Vida antiga”, além de uma versão pesada para “É proibido fumar”.


De evolução em evolução, Erasmo caiu no rock n roll agressivo (à sua maneira) em 1990-Projeto Salvaterra! (1974). Um disco de rock que trazia o peso da faixa-título, de “Negro gato”, de “Bolas azuis” (improviso roquenrol composto pela banda de Erasmo para tapar o buraco deixado por uma faixa censurada), mas ainda trazia um gozadíssimo samba-rock, “Cachaça mecânica”. Os dois melhores discos dessa fase, no entanto, estavam por vir. Banda dos contentes (1976) misturava as inovações rock n roll dos discos anteriores a uma sonoridade mais limpa, baseada em firulas vocais (feitas pelo grupo Karma), em faixas como “Filho único”, “Análise descontraída”, “Queremos saber” (de Gilberto Gil) e até numa rara parceria entre Jorge Mautner e Antonio Adolfo, a bela “Dia de paz”. Já Pelas esquinas de Ipanema (1978), um disco de sonoridade elaborada, conseguiu colocar um jazz-rock nas paradas (“Panorama ecológico”, com Liminha arrebentando no baixo) e prosseguiu nessa linha em canções como a bela “Favelas e motéis”, a intrincada “Eu e Maria”, o samba “Nasci numa manhã de carnaval” e “Meu ego”.


Após 1980, a carreira de Erasmo tomaria uma direção mais radiofônica, até mais burocrática, mas nem por isso menos acidentada. O disco Erasmo Carlos Convida (1980), trazia uma série de duetos (com Rita Lee, Maria Bethânia, Roberto Carlos, A Cor do Som) e acabou sendo sua primeira grande vendagem – logo ele, parceiro do então maior vendedor de discos do Brasil. Vieram então Mulher (1981, com “Pega na mentira”, “Mulher” e “Minha superstar”) e Amar pra viver… (1982, com a faixa-título, “Meu bumerangue não quer voltar” e “Mesmo que seja eu”), lançados também com sucesso. A boa maré prosseguiu até Buraco Negro (1984), lançado em meio a problemas conjugais de Erasmo e pouco antes do famoso passa-fora que o cantor levou dos metaleiros no palco do Rock In Rio… episódio este que, negue Erasmo ou não, acabou sendo traumático. O disco Erasmo Carlos (1985), que por pouco escapou de ganhar o nome de Narinha, teve poucos sucessos, problemas com a capa e só serviu para revelar um então pouco conhecido compositor, Kiko Zambianchi (com “Manchas e intrigas”, que o próprio Kiko regravaria em seu Disco Novo, de 2001). Abra seus olhos (1986) e Apesar do tempo claro (1988), mesmo mostrando um certo desencanto com a vida e com o showbiz em geral, já traziam um som mais renovado. Só que foram muito pouco divulgados pela gravadora e representaram o término do contrato de Erasmo com a PolyGram – episódio do qual ele diz não guardar mágoas.


Depois dessa época, Erasmo manteve sua carreira no pára-e-anda: alguns shows, poucos discos (praticamente um em cada gravadora) e algumas coincidências infelizes. O disco Homem de rua (1992), o primeiro e único na Sony, trazia músicas como a faixa título, “A carta” e “Namorada”, mas teve problemas: graças a um mal-entendido na gravadora, Erasmo acabou não podendo gravar o clipe de “A carta” (que trazia Renato Russo fazendo um dueto) e graças à morte da atriz Daniella Perez, a música “Homem de rua” acabou tendo que ser tirada da trilha da novela global De corpo e alma – a canção era tema dos personages de Daniella e (pasmem) Guilherme de Pádua. O CD É preciso saber viver, de 1996, foi lançado após a morte da ex-mulher de Erasmo, Narinha, e trazia uma série de regravações – estranho a Universal não ter querido relançar este disco na caixa. Só mesmo após o ano 2000 Erasmo colocaria a carreira nos eixos, a partir de um contrato com a Abril Music, de sucessos como “Mais um na multidão”, “Bicho de estimação” e “Quem vai ficar no gol?” e de um disco (Para falar de amor) que honrava o passado do Tremendão, de uma forma que para muitos parecia inimaginável. Mas o período compreendido pelos CDs da caixa foi o que fez história. E o que gerou muitas das invenções feitas até hoje por vários nomes do rock nacional e da MPB.


RICARDO SCHOTT, 28 anos, escreve em vários sites e mantém o blog de música Discoteca Básica (www.discotecabasica.blogspot.com).

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