Coluna Dr. Piranha: Capturado pela Matrix
A intenção inicial desse texto era discutir a semelhança entre a música tribal, primitiva, e a atual música eletrônica, inspirado por uma cena do “Matrix Reloaded”: a “rave” em Zion, logo após o discurso de Morpheus, e simultânea à transa entre Neo e Trinity. Quer dizer, eu nunca fui a uma “rave”, imagino que seja parecido com aquilo. Mas eis que, na tela do micro, deparo-me com uma estranha mensagem: “the Matrix has you”. Então, tal qual o hacker Neo, entre cabreiro e curioso, tomo a cápsula vermelha para acessar o mundo real e, com a licença dos editores da Central, vou atrás dos universos paralelos do cinema. Adsc´isso (diria o Adoniram), o (bom) cinema tem que ser como música para os olhos, e o Matrix tem ritmo suficiente para nos fazer sair da linha.
Todo filme, a princípio, é uma realidade virtual, inclusive os documentários. Mas tem aqueles cujo tema são sociedades estruturadas com uma lógica e regras próprias, mesmo que fugidias ao controle dos homens. A selva de Tarzan é um universo paralelo, assim como a Amazônia que seleciona, um a um, os humanos de “Aguirre, a Cólera dos Deuses”, de Herzog; e a cidade ao pé do vulcão “Stromboli”, cuja força, nesse filme de Rosselini, o faz soberano dos homens e da atrevida Ingrid Bergman. Três recentes produções nacionais – “Carandiru”, “Cidade de Deus” e “Bicho de 7 cabeças”- nos remetem a outra dimensão das relações sociais, e que estão aí pulsando debaixo de nosso nariz. Na literatura, há o “Tlön”, planeta virtual criado por sumidades, que aparece no livro “Ficções” (1941), do argentino Borges.
E são sumidades, tiranos ou santos, desacorçoados com a mediocridade e decadência da civilização, que encabeçam novas sociedades idealizadas para a perfeição. Elas afloram nalguns dos filmes que faiscaram na memória, ante as reflexões suscitadas pelo “Matrix Reloaded”:
“Laranja Mecânica”(1971), de Kubrick, retalha com requintes de crueldade a sociedade baseada em controle e hierarquia, sob a trilha eletronizada da Nona Sinfonia de Beethoven. Há o satírico “Barbarella”(1968), de Vadim, contendo uma impagável transa virtual, via pílulas mágicas (!), entre Jane Fonda e David Hemmings. Muito antes disso, porém, em 1956, “O Planeta Proibido”, de Wilcox, já se valia de uma perturbadora conjunção entre Freud e visual futurista para tecer outra crítica ferina à cobiça materialista dos homens. No tal planeta, uma missão espacial encontra um cientista da Terra que descobre o segredo de uma civilização cujo avanço lhes permitira fabricar coisas só com o poder da mente (“ego-facture”), mas que desaparecera por ter cedido aos impulsos da paixão e da libido (o “id” da Psicanálise). O melhor do filme é a filha do cientista (a lourinha Anne Francis) desfilando candidamente descalça e de micro-saia diante de astronautas a meses privados de sexo e, na época, diante da platéia de babões americanos, pós-macartismo e já com o rock engatinhando. Algum expert me diga como foram obtidos aqueles efeitos eletrônicos da trilha sonora.
Retrocedamos até 1937, e encontraremos aí o “Horizonte Perdido”, de Frank Capra. Um escritor, mr. Conway (Ronald Colman) vai parar por acidente, mas nem tanto, num povoado cercado pelas montanhas do Himalaia, o Shangri-lá, que embora materialmente rico, é regido pela moderação e pela gentileza (“be kind”) entre os habitantes, não existindo conflitos. Se, por exemplo, um homem deseja a mulher de outro, ele a terá sem melindres, desde que seu sentimento seja verdadeiro. Surge também um tema recorrente no “Matrix”: a nossa aparente liberdade ocidental é cercada por uma gaiola invisível, ou que fingimos não ver. O personagem Cephyr (Joe Pantoliano), ao saborear um bife virtual num restaurante da Matrix, exclama: “a ignorância é maravilhosa!”. Já quando mr Conway pergunta qual o segredo da longevidade dos habitantes em Shangri-lá, o líder, um padre de 300 anos, lhe diz: “para os ocidentais, cada aniversário é uma cerca a mais em volta da mente”. Feito pouco antes da 2a guerra, é um filme violentamente pacifista. Mas não essa paz patética que ora se reivindica nas ruas, e que não passa de uma cômoda rendição à estupidez e à chucrice; somos mais sábios, somos mais malandros que isso.
No “Matrix 1”, há citações explícitas a “Alice”, de Carrol, e ao “Mágico de Oz”, de Young, no qual a realidade é em preto e branco e a viagem/sonho de Dorothy (Judy Garland) é em Technicolor. Mas a influência mais óbvia, embora não assumida, é a de “Blade Runner” (1982), de Scott. O tema é o mesmo, as memórias implantadas só diferem na quantidade de kbytes, e o dilema do espectador é o mesmo: será que somos mesmo humanos? A cena em que Raquel (Sean Young) olha angustiada para uma foto de sua infância “implantada”, toca fundo na inquietação existencial de cada um. Raquel também se parece muito, fisicamente, com a Trinity; pode ser um caso de reencarnação cinematográfica.
O detalhe é que, ao contrário dos filmes que citei, o argumento de “Matrix”, a despeito da citação de “Simulacro e Simulação”, de Braudillard, não se baseia em nenhum livro: vem tudo da cabeça punk-HQ desses loucos Wachowski. Assessorados pela fina flor dos quadrinhos americanos, eles povoaram o filme com todos os elementos típicos das HQ, de Frank Miller ao mangá japonês: tramas que se entrecruzam e nunca se concluem, cenário carregado de detalhes, anti-heróis, heroínas magrelas e sexy, vilões implacáveis, embromações esotéricas, filosofia de almanaque. Mas tudo se resolvendo esplendidamente em imagens que são como traços de Paul Gillon, ou Jose Ortiz.
Transpor a linguagem de HQ para o cinema não é moleza: que o digam os diretores nem sempre felizes de Superman, Batman e Dick Tracy. Pra não dizer que não falei de flores, Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, em seus primeiros discos, fazem isso por música. Mas o fato é que bem antes dessa babação em cima de “tecnologia de ponta” e “efeitos de computação gráfica”, os quadrinistas já chafurdavam e satirizavam os simulacros sociais e “consensos manufaturados” (Chomski). Podia ser num futuro quase sempre decrépito – “Druuna”, de Paolo Serpieri, ou “Paralelas”, do brasileiro Watson Portela – ou num mundo atemporal, que pode muito bem ser o nosso – a “Família Buscapé”, de Al Capp.
O “Matrix 3”, já engatilhado, promete. Tá certo que vai ser difícil conseguir responder a tantas perguntas que ficaram vagando no final do “Reloaded”. Mas a massa quer efeitos, perseguições, porradas, “raves”; pensar, refletir, fica sem graça no meio dessa barulheira toda. Eu, particularmente, queria ver um pouco mais de sexo, ou pelo menos a Trinity mais à vontade.