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Coluna do Dr. Piranha: John ou Paul?

John, Paul. Dois nomes comuns, mais comuns que George e Richard. Daí uma fama incomum, um patamar acima dos mortais, chegando ao quase sagrado. Pegando carona na onda do rock n roll, os dois amigos de algumas bebedeiras fizeram, durante oito anos, o mundo se curvar ante suas provocações. Até João Gilberto teve que ouvi-los. Mas, como diz Walter Franco, “existe João, existe John”, e existe Paul, que imagino ter ouvido o João, senão não teria feito “And I love her”.


Os egos se avolumaram, os amigos brigaram, e o sonho acabou. Trocaram farpas nos primeiros discos depois da separação (“How do you sleep” X “Dear friend”), depois ficou cada um na sua. Podemos então, de diante para trás, fazer um breve apanhado dessa rivalidade e, quem sabe, até decidir qual dos dois é o melhor.


Na carreira solo, Paul fez um disco quase perfeito – “Band on the run” -, e logo depois um perfeito – “Venus and Mars”- que, porém, nunca foi devidamente reconhecido. Sua baby face (and mind) nunca esteve tão exposta: amor bem resolvido (“Love in song”), non-sense (“Spirits of ancient Egypt”), rendição ao soul (“Call me back again”), empatia com mocinhas do povo (“Letting go”, assim como já o fizera em “Another day”, “She´s leaving home”, “Lovely Rita”), e até música para a terceira idade (“Treat her gently”, retomando “When I´m sixty four”). Na faixa mais conhecida – “Listen what the man said”- o sax de Tom Scott galga com o vocal mais afiado de Paul as colinas da euforia, enquanto a letra fala de um jovem soldado beijando a garota, e dando as costas para o mundo trágico da guerra. Essas elegias de Paul às vezes assustam, pois parecem remeter a uma felicidade “burguesa e alienada” (diria algum companheiro). Quando ele se alia ao serviço secreto de sua majestade, então, a coisa adquire contornos sinistros: em vez de “live e let live”, que você falava quando era jovem e sonhador, diga agora “live and let die”. Mas ele sabe ser pop como ninguém, e suas “silly love songs” ninam uma boa parcela da humanidade.


John, que sempre se manteve mais à esquerda, nos brindou com uma obra-prima, em 1970, apresentando, ainda sem o panfletarismo que se verificaria mais tarde, suas idéias políticas (“Working class hero”), religiosas (“God”), e revisitando seus fantasmas existenciais (“Mother”, “My mummy´s dead”), ele, que lia Joyce e Carrol, entre outros. No próximo – “Imagine”- ainda mais maduro, um discurso direto e apurado nos põe frente a frente com sua alma inquieta, e quase que podemos tocá-la: “you can wear a mask and paint your face,…, but one thing you can´t hide, is when you´re crippled inside”. Depois, a dona Yoko convenceu-o a fazer militância “political-pop”, e a escrever coisas como “Woman is the nigger of the world “(a mulher é o crioulo do mundo). O resultado disso todo mundo viu.


Agora, de volta ao começo: Paul sempre pareceu mais afeito às canções (“I´ll follow the sun”), denotando influências de Buddy Holly, enquanto John tendia para o rock´n roll (“When I get home”, um rockaço esquecido) na trilha de Chuck Berry. No entanto, isso só serve para satisfazer a sede de classificar dos acadêmicos de plantão, pois tanto John fez depois grandes canções (“No reply”, “In my life”), como Paul é responsável por dois dos maiores rocks da história (“Helter Skelter” e “Let me roll it”). John foi o grande divulgador da terapia do grito primal, mas só o ouvimos soltar a voz de verdade na alucinada “Cold Turkey”, de 1969, e ainda assim um grito sufocado. Já o Paul, além dos rocks já citados, mata a pau em covers como “Long tall Sally”.


O “White Album” é quem dá a melhor munição para os fãs argumentarem a favor de um ou de outro. Nesse disco, a ironia de John está a toda (“Yer blues”, “Sexy Sadie”, “Cry baby cry”), provando que ele era, digamos, mais ilustrado que Paul. Ah, mas e a “finesse” de “Honey pie”, a concisão de “I will”, contrastando  com a vulgaridade escrachada de “Why don´t we do it in the road”? O famoso compacto Strawberry fields forever / Penny Lane, de 1968, é quem pode decidir o match: embora John se queixe, em sua última entrevista, que o clima de experimentação sempre sobrava para suas músicas, em “Strawberry” isso resultou muito positivo. A letra absolutamente lisérgica é conduzida sob fitas tocadas de trás para frente e distorções de naipes da orquestra. Em “Penny Lane” , ao contrário, a orquestração é limpa e requintada, ressaltando a mais bela melodia já feita, e uma letra não menos lisérgica, mas com imagens mais cinematograficamente objetivas: “behind the shelter in the middle of a roundabout”. Comparem como os dois encaram  “A day in the life”, no “Sgt. Pepper´s”:  melancolia X displicência.


No último disco do grupo, há uma belíssima canção soul – “Oh darling”- cantada por Paul à la Otis Redding, e em seguida um blues literalmente pesado de John: “She´s so heavy”. No lado 2 (desculpem, mas só consigo ouvir o vinil), há uma espécie de “jam-session”, ou, se os eruditos assim o preferem, uma “suíte” dividida em cançonetas carregadas de non-sense. Em alguns trechos, parece reacender a parceria, mas Paul é quem comanda o “gran finale”, rogando uma praga aos membros do grupo, ele incluso: “boy, you´re gonna carry that weight for a long time”.


Muita água e muita grana rolou depois disso, e não tem essa de falar em “personalidades complementares”, etc… Dois destinos se cruzam, se atraem, e logo se repelem. Não existiram, na história, duas almas tão expostas à  visitação e execração pública, e mesmo com tudo isso ainda irradiando autenticidade. Diga-se, sem precisar exibir a genitália, como gostava o Kurt Cobain.


Ednaldo Calahani


PS: Meus amigos e inimigos, agradeço seu apreço nesse 1º semestre; estarei de volta em agosto, se Deus e o Diego assim permitirem. Como dizem na Polônia, hasta banana!

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