Coluna do Dr. Piranha: Influência do Rock
“coitado do meu samba/ mudou de repente/ influência do Jazz”
(Carlos Lyra, em Influência do Jazz)
“la musica ideas portará”
(Kraftwerk, em Techno Pop)
Todas as decisões que tomamos, inclusive as impulsivas, se apóiam em referências anteriores: pais, ambiente, berço, escola, trabalho, hábitos da convivência consigo mesmo. E a cultura. Que, enfim, parece ser o que resta para exercermos nosso poder de escolha. É inquestionável que, desde a invenção do rádio e do fonógrafo, a música veio mais e mais assumindo o papel de preencher o vácuo cultural dos filhos da sociedade industrial, no século passado, e agora, da sociedade cibernética.
Da metade do século XX em diante, o rock tomou a frente (e lá se foi o nosso poder de escolha…) dessa missão de saciar a massa. Primeiro, por ser a sua faixa etária consumidora (atualmente, dos 14 aos 25 anos) o nicho de mercado mais lucrativo de todos os tempos; e segundo, por esse nicho representar a fase em que, por força da libido à flor da pele, tudo o que nos apaixona gruda e não sai mais, virando referência para o resto da vida. Principalmente se falamos de música.
E essa música que nascera de porões negros e garagens brancas, já nos anos 60 e até meados dos 70, associou a contundência de seu ritmo e seu poder pop a letras e atitudes que disseminavam a chamada contracultura (luta por direitos civis, liberdade sexual, quebra de paradigmas, paraíso aqui e agora). A intenção ali explícita de interferir na sociedade, facilita agora nosso trabalho de capturar seus reflexos.
É na maturidade (26 a 40 anos) que eles se manifestam, embora a própria contracultura não leve muito a sério essa questão de “idade cronológica”. Mas nessa fase, cronologicamente ou não, temos que pensar pra decidir; e o pensamento, como vocês já sabem, vai sempre ouvir as velhas paixões da juventude.
A filosofia da contracultura pode ser sintetizada numa frase, derivada do existencialismo, e muitas vezes repetida por John Lennon em suas letras: “it´s up to you” (depende de você ou, como diz um famoso locutor esportivo, “vai que é sua…”). Seja de uma forma exacerbada (caso dos yuppies nos anos 80), seja de um modo mais racional (o movimento ecológico e as ONGs dos anos 90), é muito clara, pelo menos no Ocidente, a apropriação coletiva desse espírito, ainda notável em várias tribos contemporâneas. Só que nada disso seria possível se o veículo utilizado fosse outro que não o rock.
Há outro lado também. Tachado de pernicioso por pais de todas as épocas, o rock, desde os teddy boys dos anos 50, sempre andou às voltas com acusações de incitação às drogas, à delinqüência, à promiscuidade sexual, ao homicídio, ao suicídio e ao satanismo. Claro que a mídia, por interesses comerciais, já baixou a bola, mesmo porque sertanejos e pagodeiros tem freqüentado bem mais a página policial do que rockeiros (vide o recente caso do bebê agredido pelos pais, cantores sertanejos). Mas outros olhos continuam vigilantes: há vários sites na web que se dedicam a pesquisar referências subliminares a seitas malignas, até em letras do Balão Mágico (!!!). Tanto trabalho à caça de bruxas ocultas, quando o rei Raul em pessoa proclama com todas as letras: “o diabo é o pai do rock…”.
No Brasil, os “movimentos” foram a marca dos anos 60. Bossa Nova, Teatro Opinião, Jovem Guarda, Tropicalismo. Interessante notar que a Jovem Guarda, embora não intencionalmente, foi o único a transcender as classes sociais, e estabelecer um formato pop até hoje imitado. Mas se o papo é formação de opinião, a tal Música Popular Brasileira é quem predomina. Nossos últimos governantes, incluindo a cúpula atual do PT, por certo ouviram muito Chico, Milton, Belchior, Caetano. Exceto a Marta, claro, que deve ser fã da Rita Lee. Rita! Roquenrrou!!
É, mas o “Roque” mesmo só viria emergir nacionalmente, como um monstro na lagoa, em 1982, com o humor sacaninha da Blitz. Assim, se fizermos as contas, aqueles que vemos hoje consolidando suas posições na política, nas empresas, nos jornais, nas associações de bairro, nas escolas, e na própria música, são ainda os filhos-ouvintes da entressafra pré-rock, quando os compositores começavam a padecer de falta de assunto, as cantoras se emboleravam, a TV expandia sua má influência, e as músicas para “baixinhos” lideravam as paradas. Aí, é como disse o Lobão, numa entrevista à Playboy: “quem cresceu ouvindo Xuxa só podia mesmo virar Alexandre Pires”. Então, vamos lá, quem cresceu ouvindo Lobão, Legião, Titãs, Ira, Paralamas, Lulu e cia., o que é que vai virar?
O rock-Brasil, embora forme um bloco coeso, está sempre mais entretido em atender o mercado que cultivar idéias. Afinal, “fazer a cabeça” não enche a barriga de ninguém. Claro que o “Cabeça Dinossauro”, ou algum disco do próprio Lobão, ou o primeiro disco do Ultraje a Rigor, fizeram muita gente descobrir que pensar, de vez em quando, não dói. Mas quando se fala em influência, ou em quantidade de adeptos, não tem prá ninguém: o Legião Urbana traz uma verdadeira legião urbana atrás de si.
Nunca vi graça no Legião. Na época em que despontaram do Planalto Central para a Baía de Guanabara, crias da anarquia Punk e da morbidez do Joy Division, um legionário com o dedo em riste afirmou que o meu nariz torcido era porque aquelas canções tocavam nalgum ponto que me incomodava. Respondi que sim, que me incomodava muito a má poesia. Não sei se hoje daria a mesma resposta. Musicalmente, as limitações são confessas pelo próprio Dado Villa-Lobos, e não é o caso de se aprofundar nisso pois é também evidente que “música”, para o Legião, é só um pretexto. Assim como para os Doors um fundo musical de segunda linha serve de jumento manco para os poemas de Jim Morrison (a analogia do Russo com o Morrison pára aqui).
Agora, não dá pra fazer ouvidos de mercador quando meninos e meninas, de ontem e de hoje, repetem e repetem letras quilométricas com fervor religioso. Ou bélico? Legião: divisão do exército romano. Uma legião segue o Legião. Ou um rebanho: a intenção do nome é muito mais messiânica, como comprovam as canções. E embora seja impossível negar seu poder de persuasão, continuo achando que são uma espécie de hinos apócrifos recitados sobre acordes usados ad nauseum pelos “meninos de Deus”, em suas pregações musicais na década de 70. A verborragia presunçosa, assexuada e sem humor de Renato Russo cria um apocalipse de brinquedo (“mesmo que as estrelas comecem a cair”), e repisa contradições da “burguesia sem religião” com uma ingenuidade política que me parece encenada. Dizem os críticos sem espírito crítico que eles são neo-românticos, que liam Rimbaud no original, e que fingimento e presunção fazem parte de seu “spleen”. Não me convencem. “Há tempos o encanto está ausente”: pois é verdade. Dá pra resumir a ópera legionária, e também toda angústia adolescente, numa cena de “Rebel without a case”(Juventude Transviada), de Nicholas Ray: o personagem de James Dean, prestes a travar um “racha” fatal com o boyzinho da escola, pergunta-lhe: “why do we do this?”(por que estamos fazendo isso?). Ao que o rival responde: “you got to do something now, don´t you?”(você tem que fazer alguma coisa agora, não tem?). Máximo de significado com um mínimo de tempo e meios.
A legião já está aí, porém, dando as cartas, ocupando cargos e pondo à prova a influência do grupo. Temos até um clone deformado, chamado Catedral, que lhes amplifica os maneirismos, como a postura afetada e o vocal à Jerry Adriani, e nem se dão ao luxo de fingir inteligência. Pensando bem, perto do Catedral, o Legião é genial.
Não é mole falar sobre “função da música”, ou sua “influência histórica”. Deixo isso para os sociólogos; FHC, agora livre e solto, bem que poderia se incumbir da tarefa, ele próprio sendo uma prova de que a qualidade das referências culturais não garante para sempre a qualidade das atitudes. Pois é difícil medir os efeitos de uma canção. Além disso, o rock e a música em geral sempre dão margem a interpretações que, no marketing da indústria cultural, são reforçadas na medida em que alavancam as vendas. Assim, “Love of my life”, do Queen, e “I´m not in love”, do 10 CC, concebidas originalmente com intuito satírico, viraram clássicos do cancioneiro brega-chic, tocando até em casamentos. “The great gig in the sky”, cantada por Clare Torry no “Dark Side of the Moon”, do Pink Floyd, é hit absoluto nos rendez-vous e casas de strip-tease.
O que é certo em nossa percepção diária é que a música, com ou sem letras revolucionárias, aditivada ou não por substâncias estupefacientes, interfere em nossa maneira de encarar o mundo. Nossa inteireza, corpo mente e alma, parece só (ou ao menos quando estamos vestidos) ser sentida no momento em que ouvimos aquela canção dos dias inconseqüentes. Ela espanta o fantasma das dúvidas e da desintegração, e nos faz poderosos, destemidos, amados, mesmo que só por três minutos.
Agora, especular sobre como essa influência fragmentada atua em nossas decisões, pode nos levar a incômodos veredictos. O momento não é oportuno para citar o Pete Towsend (olha a página policial aí…), mas certa vez num programa de TV alguém da platéia desandou a agradecê-lo, dizendo que se não tivesse ouvido “Baba O´Riley” sua vida não seria a mesma, etc., até que Pete, interrompendo-o, respondeu: “ok, ok, agora, por favor, faça aquela pergunta inteligente que você preparou”.
Passando para um cenário macro-político, a névoa só aumenta. Por um lado, por exemplo, os Estados Unidos tiveram 8 anos de prosperidade econômica sob o governo de Bill Clinton, que em 1968, aos 22 anos, estava na universidade. Claro que ele, em nenhum momento, fez menção a valores (desculpem o paradoxo) contraculturais em sua política, mas é significativo o fato das relações internacionais (vamos esquecer por ora as extra-conjugais) terem sido pautadas pela negociação, assertividade, e atéética. Reconheça-se, da mesma forma que no governo FHC.
Por outro lado, hoje temos, da mesma geração de Clinton, o cachorro louco que ladra em Washington, e o papagaio banana split ecoando em Londres. Quando se noticia que 70% da população americana e inglesa apóia seus governantes na empreitada bélica contra um país depauperado, nós, que pensamos em música (e sexo também, claro) quase o tempo todo, somos levados a pensar: O que será que entorpeceu essa moçada, que cresce há décadas bombardeada pelo rock top de linha do planeta? Será que, reativando o alarme dos militantes da esquerda ortodoxa, o rock não passe de um anestésico sossega-leão em dose coletiva?
Se em sua trajetória o rock topou muitas brigas contra estruturas consolidadas, inclusive os elefantes brancos (ou vermelhos?) da esquerda, hoje sua luta é para escapar das teias do mercado que o absorveu. Mas, mercado à parte, em tempos que se fala do “resgate da auto-estima do povo brasileiro”, a música continua sendo a senha para investirmos com vontade nas referências que nos levam a “não ter medo de nenhuma careta/ que pretenda assustar”, conforme ensinamentos do reverendo Ronaldo Bastos.