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Coluna Acordes: o canto vivo de uma vitoriosa voz

Quem acompanha a trajetória de Maria Bethânia sabe que ela nunca se deixou laçar pelas regras do mercado dando vazão unicamente a seus próprios sentidos. Quando era prática pouco usual lançar discos ao vivo, ela cultuava esse hábito por ser uma intérprete que tem no palco a consagração definitiva de sua arte. A força cênica e dramática de Bethânia extrapola os horizontes de um estúdio e transborda nas apresentações ao vivo.


Nos últimos anos, as gravadoras infestaram o cenário de lançamentos ao vivo, tanto pelo apelo comercial do produto quanto pelo barateamento dos custos de gravação. Alguns desses discos se justificam, outros porém, não passam de meros álbuns caça-níqueis que insuflam a pobreza do mercado musical brasileiro.


“Maricotinha ao Vivo” pelo seu formato e pela própria história de Bethânia não traz grandes inovações. É um CD duplo, repleto de canções passionais e doídas soberbamente costuradas por poemas que transformam-se em carne viva na voz dilaceradora de Bethânia. A principal novidade diz respeito à nova gravadora da cantora, a Biscoito Fino. Bethânia rompeu com as multinacionais e optou por um selo independente que abriga artistas de altíssimo gabarito, como Miúcha e Joyce, dentre tantos outros, mas que não têm força mercadológica.


O intrigante é que Bethânia é uma artista extremamente popular, que já superou algumas vezes a marca de um milhão de cópias e mantém vendagens regulares e satisfatórias em todos os seus lançamentos. A opção da cantora reitera sua filosofia de manter-se acima da pequenez da comércio e banalização da arte. O foco de Bethânia não está nos números e cifras, mas na riqueza poética e melódica da música brasileira.


O repertório de “Maricotinha Ao Vivo” é eminentemente romântico. Não é à toa que Chico Buarque é o compositor mais vezes presente no álbum. O mano Caetano tem participação discreta: o show traz apenas uma canção de sua autoria “O Quereres”. Já o CD ganhou o reforço em estúdio de “A Voz de Uma Pessoa Vitoriosa”, parceria dele com Wally Salomão.


Os arranjos de Jaime Alem primam pela descrição para que a voz soberana de Bethânia mergulhe nas canções. Surgem assim interpretações primorosas para canções como “Festa” (Gonzaguinha), “Pau-de-Arara” (Guio de Morais/ Luiz Gonzaga), “Rosa dos Ventos” (Chico Buarque) e “Sobre Todas as Coisas” (Chico Buarque/ Edu Lobo), esta última inédita na voz da artista. Outra canção de Chico que Bethânia gravou foi “Sob Medida”, em uma versão inferior às gravações de Simone e Fafá de Belém. O tom quase operístico de Bethânia contrasta com a frivolidade proposital da canção.


Algumas canções que Bethânia nunca tinha gravado são os destaques do disco. “Casinha Branca” (Gilson/ Joran), acompanhada pelo violão de Jaime Alem, nunca soou tão bela e elegante. “Todo Amor que Houver Nessa Vida” (Cazuza) ganhou uma interpretação raivosa e impecável da cantora. Bethânia equilibra-se magistralmente na tênue linha entre o popular e o cafona, transformando “Seu Jeito de Amar” (Gilson /Joran) e “Nossa Canção” (Luiz Ayrão) em dois instantes de arrebatamento.


Os textos escolhidos por Bethânia são apaixonados e apaixonantes. “Quando o Amor Vacila”, de autoria não creditada, é emoção bruta, com versos impactantes como “eu te amo pela tua essência até pelo que você podia ter sido se a maré das circunstâncias não tivesse te banhado nas águas do equívoco”. As partes são interessantes, mas é o todo de “Maricotinha Ao Vivo” que realmente faz sentido, pois nada está ali por acaso. É um espetáculo despudoradamente romântico que tem em Bethânia a persona ideal para vivenciar essas paixões sem disfarces ou meias verdades.

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