Coluna Acordes: Irrecusável Cantada de Adriana Calcanhotto
Adriana Calcanhotto. Nome de muitas letras. Artista de poucas palavras. Ela resolveu acrescentar em seu nome artístico um segundo T, original de batismo. Mais uma letra. Menos acordes e versos. Esta parece ser a busca constante da cantora: limpar, enxugar, alcançar o inatingível, manter apenas o essencial. “Cantada” é o passo mais ousado e determinado rumo a esta conquista. O CD é econômico, inteligente, transborda simplicidade. Falha ou limitação? Ao contrário, no caso de Adriana Calcanhotto ser simples é manter-se a léguas de distância da banalidade.
“Music”, hit de Madonna, pode ser a chave para o entendimento de “Cantada”. Saem as programações e loops destinados às pistas de dança e surge uma canção delicada, sensual, embalada pelo violão da cantora e, principalmente, pelo piano genial de Daniel Jobim. Nada se perdeu, a essência da canção foi preservada, embora a apresentação atual seja radicalmente diversa.
A economia se estende também pelos versos criados por Adriana. O substantivo e o adjetivo são figuras centrais. Do concreto nasce a abstração. O verbo é apenas o recheio, usado de forma precisa, nunca em excesso para não enjoar. O tempo das canções, ao contrário do que se poderia imaginar, não é exíguo. Ele permite a repetição, em alguns casos beira a saturação. “Justo Agora” (Adriana Calcanhotto) tem suas poucas palavras repetidas por quase quatro minutos. A incredulidade da situação justifica a repetição. Justo Agora? Haverá o tempo certo? E o tempo haverá?
“Programa” (Adriana Calcanhotto/ Antônio Cicero/ Waly Salomão) é brilhante em sua face noturna. A participação de Moreno + 2 é puro instante ensolarado. O cello de Moreno Veloso ilumina qualquer hora, pouco importa se dia ou noite. O CD vai à caça em todas as horas. Namora a escuridão na lírica “Noite” (Antonio Cícero/Orlando Morais), flerta com balanço “Sobre a Tarde” (Adriana Calcanhotto), transpira tristeza e beleza em “Calor” (Adriana Calcanhotto), instante de grandeza em um disco repleto de irresistíveis convites.
A “Cantada” que entitula o CD ganhou gravação anterior de Maria Bethânia, de quem o amor é velho conhecido. Adriana parece ter se acanhado diante da força de “Maricotinha” e cometeu uma versão tímida, inferior. Superior mesmo é a própria canção, uma das melhores da última safra da compositora. “Pelos Ares” (Adriana Calcanhotto/ Antonio Cicero) abriga sedutora dualidade. A casa inteira vai para o espaço. Tudo reassume seu lugar. É hora de esperar o grande amor, que há de voltar embalado pelo arranjo magistral da canção. Tecno tango ou tango beat, não importa. A beleza ultrapassa qualquer conceito ou denominação.
O grupo Los Hermanos arma seu circo melancólico em “A Mulher Barbada” (Adriana Calcanhotto). É possível filosofar no picadeiro. Da filosofia para a poesia. Surge Drummond. Recitado. Inusitado em seu “Jornal de Serviço”. Suingado pelo Bossacucanova. Ao final do CD, o ouvinte é embalado por Nina (Adriana Calcanhotto). Pura simplicidade. Não há pressa. Em “Eu Espero” (Adriana Calcanhotto), há sabedoria. “Quanto mais eu te quero, mais sei esperar”, diz a canção. Devagar se vai ao longe.
“Sou Sua” e “Intimidade (Sou Seu)”, ambas de Péricles Cavalcanti, são redundâncias. Em um trabalho que procura eliminar as gorduras a todo custo, estas duas canções mereciam ser lipoaspiradas. A busca continua. Bom sinal. Quando se chega ao fim não há mais nada a fazer. Adriana ainda tem muito há dizer. “Se Tudo Pode Acontecer” (Arnaldo Antunes/ Alice Ruiz/Paulo Tatit/ João Bandeira), que seja breve. Esta canção é a mais bela e certeira cantada. A paixão é irremediavelmente o próximo passo.