Beatles viram Frankensteins na auto-regulação do mercado
Eis que ganho de presente um Cd com um software que faz rodar, no formato wav, os 26 álbuns dos Beatles lançados no Brasil, incluindo coletâneas, além de letras e vários extras. Edição bem cuidada, apresentação gráfica mediana, letras sem erros. O som pouco difere das versões MP3 (também em um único Cd) comercializadas por camelôs paulistanos, embora surpreendentemente pareça superior aos irreconhecíveis CDs oficiais que, suponho, lhe serviram de matriz, e incluo aí as remasterizações supervisionadas por George Martin.
É nesse caldo que quero meter a colher: quem já ouviu Beatles nos originais de vinil 180 gramas Hi-Fi (o ápice da gravação analógica) da Odeon, não consegue conter o bocejo na segunda audição de qualquer um desses Frankensteins, compactados ou não. Frankenstein porque a digitalização é uma reconstituição do som macerado quando da transmutação para códigos binários (quem assistiu A Mosca sabe do que estou falando), e bocejo porque o som digital dá fadiga: o cérebro tem que recompor os fragmentos que sobraram nessa operação, idealizar que aquele som desfigurado é algo mais, é quase como ao vivo, como prometiam os marqueteiros digitais.
O processo de audição do som digital se assemelha a fingir um orgasmo; fingimos tanto, e tão perfeitamente (diria o poeta em Pessoa), que passamos a ter aquele simulacro de gozo como referência. Pra ajudar, com o Pro Tools imperando, fica difícil saber, do estúdio pro estádio, se o Charlie Brown Jr. realmente toca de verdade. Mas, para que isso não vire de vez um filme de horror, vamos invocar a dialética e focar um outro ângulo: enquanto imaginamos que aquelas frases melancólicas da viola de gamba em Eleanor Rigby estão ali íntegras, a democratização do conhecimento musical proporcionada pela tecnologia digital, quase que de uma hora para outra, fascina a qualquer marciano. Na medida em que se encontra na Web praticamente todas as músicas já gravadas no planeta, viabilizam-se experiências reais, não mais virtuais, para pessoas que mal discerniam sons e cores alguns meses antes.
Fascina, assombra, e se torna monstruosa quando se detecta a absoluta ausência de critérios para a assimilação de tanta informação, submetendo as escolhas às oscilações do mercado. Adorno, filósofo alemão falecido em 1969, falava no distante 1938 sobre a regressão da qualidade de audição que a humanidade entre-guerras experenciava diante dos produtos da então nascente indústria cultural, centrando fogo sobre a proliferação da música de salão e a música popular americana (big bands, Frank Sinatra).
Acenava-se, da mesma forma, com democratização do acesso à cultura, só que, na verdade, a indústria é que passava a determinar seu próprio consumo. Hoje, o acesso é universal tanto para a música como para o sexo virtual; vai daí que, quanto mais eu faço download, mais pocotó me aparece.
Em ouvidos besuntados de laticínios pasteurizados, entram pocotó e Trio Mocotó parecendo a mesma coisa. Os padrões tecnológicos que passam a modular nossos sentidos, nivelando por baixo, decalcando referências e parâmetros vitais, reportam-nos às memórias implantadas nos replicantes de Blade Runner. Eu, um replicante pelo avesso, tive que deletar minha memória Hi-Fi para poder curtir no sossego o recentemente lançado DVD A Hard Days Night (Os Reis do Iê-iê-iê!!), já que as canções “restauradas” todas saíram a cara do vovô Frankenstein.
Ocorre que, para nós mortais e assalariados, só resta tempo para ouvir música quando estamos em frente ao micro, à noite, levando trabalho pra casa, navegando em sites de crítica musical, vendo fotos de peladonas, etc.. Assim, o ato primordial de ouvir música está em extinção; são poucos os que ainda param, ou dançam, para “curtir um som”. Não se trata de romantismo, purismo ou preciosismo, mas CD, MP3 e similares não foram concebidos para ouvir, e sim para acompanhar, embalar. Se você só ouve, começa a prestar atenção, e a coisa complica. Ano passado me deram de presente (ah, esses presentes…) a coleção Jazz for…(rainy afternoons / when you´re alone / open road, etc..). A música é cada vez mais muzak; não por acaso, a New Age começou com as primeiras gravações digitais. Lounge Music, Enya, Smooth Jazz, Etnic, Ambient são frutos, saborosos sem dúvida, dessa estética “clean”, onde mesmo a música para dançar (Trance, Drum n Bass) é muito mais um groove para acompanhar a dança, não para ser dançado. Claro que isso não decretou a falência da criatividade, como atestam os saudosos Art of Noise (música para mountain bikes) e Cocteau Twins (música para passear no zoológico). Só que são poucos os que encaram a tecnologia como uma ferramenta, um meio para se atingir os propósitos , e não como um fim em si.
Voltando ao quarteto de Liverpool, não digo que John e George estão rodopiando no túmulo por conta dessas gaiatices; George, na verdade, queria mais é que lhe dessem crédito por seus breves solos na primeira fase do grupo, como em “And I Love Her”. Mas a clareza da palheta tangendo as cordas do violão eletrificado (memória Hi-Fi voltando…) vai ter que aguardar, who knows, o DVD-A Plus, ou o DVD-B, ou o C…. Talvez a reversão da regressão auditiva da humanidade, como queria Adorno; ou então, que continuemos fingindo orgasmos.