Acordes: o poder da crioula Elza Soares
O mercado musical brasileiro é notório por colocar artigos de quinta categoria nas prateleiras e desprezar o que realmente tem algum valor. A indústria fonográfica trabalha com produtos, não com artistas. Devido à esta lógica invertida, Elza Soares vem enfrentando imensas dificuldades para gravar no Brasil. Ela até pode não ser considerada pelo mercado um produto de forte apelo comercial, mas nem mesmo a cegueira das gravadoras as impede de enxergar a grandiosidade da artista Elza Soares.
Depois de lançar “Carioca de Gema”, de forma independente, em 1999, Elza passou por uma série de problemas, inclusive uma queda do palco da casa de shows Metropolitan, que inspirou a canção “Dura na Queda”, feita por Chico Buarque especialmente para o musical “Crioula”, montado no Rio de Janeiro, em homenagem à cantora. O espetáculo, aliás, marcou o início de uma fase bastante positiva, que culminou com o encontro de Elza Soares com o músico José Miguel Wisnik, que dirigiu o show “Dura na Queda”, com grande sucesso de público e, sobretudo, recolocando nos palcos uma Elza Soares plena.
Após o êxito do show, nada mais justo do que gravar um CD, o que não deveria ser difícil, face à ótima repercussão de “Dura na Queda”. Ledo Engano. Elza não encontrou respaldo em nenhuma grande gravadora e mesmo selos de médio porte não acolheram a artista. Até que, finalmente, o selo baiano Maianga – que vem se destacando pela qualidade de seu cast, contando com nomes como o próprio José Miguel Wisnik e Jussara Silveira – abraçou o projeto e Elza está lançando “Do Cóccix até o Pescoço”, um CD contundente e brilhante, que finalmente dá à cantora a oportunidade de mostrar-se inteira, sem nenhum pudor em ser ousada, moderna, eclética, sem jamais perder a coerência.
A sambista continua em cena, mas abre espaço para que a alma da intérprete expanda seus horizontes, visitando o rap, o funk, o chorinho, o tango, o pop, com resultado igualmente fascinante. O repertório apresenta composições inéditas de Caetano Veloso, Chico Buarque, José Miguel Wisnik, Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown, Jorge Benjor, todos rendidos à maestria de Elza, em uma sucessão de belas músicas.
Um dos grandes destaques do CD é, indubitavelmente, “A Carne” (Seu Jorge/Marcelo Yuka/ Wilson Cappellette), onde Elza grita – em interpretação visceral – que “a carne mais barata do mercado é a carne negra”. É de arrepiar a medula, assim como “Fadas” (Luiz Melodia), genialmente transformada em tango. Dois momentos sublimes, que, por si só, valeriam o disco. Entretanto, o que não falta em “Do Cóccix até o Pescoço” são instantes de rara inspiração.
“Dura na Queda” abre o CD com versos magistrais: “vagueia devaneia/ já apanhou a beça/ mas pra quem sabe olhar/ a flor também é ferida aberta/ e não se vê chorar”. O samba-funk “Hoje é Dia de Festa” apresenta Jorge Benjor em plena forma, com destaque para o excelente arranjo de metais. “Haiti” (Caetano Veloso/Gilberto Gil) reaparece em versão inferior à gravação original dos autores, mas ainda assim bastante eficaz. De Caetano é também “Dor de Cotovelo”, de onde foram retirados os versos que dão título ao CD. Do alto de seus 60 anos, Caetano comprova que sua suposta decadência artística só está na cabeça daqueles que se regozijam em apontar a “morte” da MPB.
Nas suingadas “Etnocopop” (Carlinhos Brown) e “Eu Vou Ficar Aqui” (Arnaldo Antunes) e na pungente “Flores Horizontais” – texto de Oswald de Andrade musicado por José Miguel Wisnik – Elza dá um banho, assim como no pout-pourri de sambas “Quebra Lá que Eu Quebro Cá”, em dueto com Marcos Suzano e “Bambino” (Ernesto Nazareth/José Miguel Wisnik). Há ainda “Cigarra” (Elza Soares/Letícia Sabatella) e os bônus “Todo Dia” (ABM de Aguiar) e o tema de abertura de uma novela global, “Façamos, Vamos Amar” (Cole Porter em versão de Carlos Rennó), em dueto com Chico Buarque.
“Do Cóccix até o Pescoço” é convincente da primeira à última faixa, pela excelência do repertório, pelo brilho de Elza e também pela produção primorosa de José Miguel Wisnik e Alê Siqueira, que souberam modernizar Elza, sem descaracterizá-la, sabendo enxergar na artista o que ela tinha de melhor e genuíno, sem maquiagens ou efeitos que, ao invés de acrescentar, poderiam tão somente deformar a cantora. O casamento de percussões com instrumentos acústicos e scratches e Dj´s resultou em um poderoso caldeirão sonoro. O grande disco de 2002 já foi lançado. Que ele marque o retorno definitivo de Elza ao cenário musical brasileiro!
Alan Marcos é jornalista. Email: alandiniz@yahoo.com.br.