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A assumpção do Itamar

Esse mundo é mesmo engraçado: com tanto Alexandre Pires pra bater as botas, e vai logo o Nego Dito. A comparação cai como uma luva, os dois moraram na Zona Leste de São Paulo, e nos retorna a inevitável questão: que país é esse em que um cantorzinho de pagode chulé faz sucesso internacional e se mete a vestir ternos Armani sem ao menos saber vestir uma camiseta Hering; enquanto um construtor de poesias musicadas, ou músicas poetizadas, que misturam simplicidade e complexidade, que sintetizam sua vivência e seus neurônios inquietos, morre esquecido e mal deixando pro sustento da família.


Perdoem-me a revolta, mas é que acompanho o Itamar desde que ele fazia shows no pátio da ECA (Escola de Comunicações e Artes de São Paulo), em 1979, junto com o Arrigo Barnabé, e depois no festival da Tupy, em 1980, ainda tocando baixo e “falando” o refrão “sabor de quê?” (ao que a platéia, sempre participativa, respondia: “merda!”), na música “Sabor de Veneno”, também de Arrigo. Depois fui comprando todos os seus discos (quando os achava nas lojas), desde o “Beleléu” até o “Pretobrás”, e não posso deixar de fazer, não uma homenagem (“me dê as flores em vida…”, sentenciava Nélson Cavaquinho), mas uma simples lembrança fragmentada de seu trabalho.


Andando sempre “às próprias custas”, Itamar generosamente povoava seus discos com o supra-sumo da vanguarda poética (poesia concreta, Paulo Leminski), em contraponto a discursos coloquiais extraídos de sua vida numa casinha da Penha (“lá eu vou plantar meu pé de ameixa”, dizia ele). Tinha lugar também para as HQ de que era fã, e o exemplo mais claro é “Noite de Terror”, de Getúlio Cortes, que está no seu disco ao vivo, com direito a suspense e intervenções teatrais. Musicalmente, o requinte de mesclar reggae, rock, funk e samba-canção sem que se possa rotulá-lo de nada, só encontra paralelo no “Negro Gato” Luiz Melodia. Era “bras acesa, zás!” no meio das cinzas da MPB.


Antes do último disco (“Pretobrás”), ele gravou pela Baratos Afins três discos que merecem uma atenção especial, não só pela criatividade do autor, mas também pelas participações especiais (Makalé, Tom Zé, Rita Lee), pela qualidade de som, pelas capas e pela maravilhosa banda das Orquídeas.


Itamar morreu ontem aos 53 anos, mas, pelas últimas fotos, aparentava muito mais, por conta do tratamento de quimioterapia. Lembro-me que Charlie Parker, outro gênio incompreendido, morreu aos 35, mas parecia ter 53, conforme relatado em sua biografia. Coincidências. Mas o “espírito que canta” subiu aos céus, sim, de posse de seu “chavão que abre porta grande”, já que cá na terra as portas se fecharam. Mas isso não vai ficar assim…

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