Sérgio Sampaio: Ecos de um doido que não se situa
Raul: pô, Sérgio, justamente num sonho você me aparece?
Sérgio: não esquenta não meu irmão, que melhores dias virão, hein, Luiz?
Luiz: eu, como nós, canto e mostro que sou santo, e nada…
Coro: mas chuvas vão cair, a chuva molha tanto…
O improvável encontro entre três sábios brasileiros, o maldito maluco beleza (Raul Seixas), o maldito que vestiu a carapuça (Sérgio Sampaio), e o maldito que sobreviveu (Luiz Melodia) poderia, quem sabe, resgatar a hoje escassa inteligência de nossa música. Deles, amigos mas nunca unidos, malditos e sempre mal ouvidos, o Sampaio sem dúvida foi aquele que sentiu na pele e sob a pele os desdobramentos dessa maldição. Voluntariamente, diga-se, seja por sua vocação para quixote, seja por só assim poder trafegar com suas inquietações. O doido que nunca se situou, porém, deixou uma obra perturbadora, já pinçada e comentada por seu biógrafo Rodrigo Moreira (www.sampaiotributo.hpg.ig.com.br). Aqui, pontuaremos algumas ressonâncias e referências observadas, principalmente com relação a seu trabalho menos conhecido: seu último LP, “Sinceramente”.
Depois de aludir à repressão policial e política da época, mesclando alegorias a pinceladas autobiográficas em seu primeiro disco – o “Bloco na Rua” – 1973; e de fazer samba pra vender sua sátira existencial em “Tem que Acontecer”(e não aconteceu, e não vendeu), Sérgio teve de entrar e sair do buraco várias vezes para, enfim, gravar seu disco independente, em 1983. Sob sua direção musical, junto com seus músicos mais chegados (Renato Piau, Oberdan e cia.), ele parece encontrar em boleros e baladas com acento blues a levada certa para derramar seu vocal ora claro como Nélson Gonçalves, e sua confissões cariocas. Em 1974 ele já nos brindara com “Foi Ela”, experimento samba-blues que, parafraseando um antigo samba homônimo de Chico Alves, resultou superior ao “Mora na Filosofia”, de Monsueto, na gravação de Caetano feita um ano antes, em Londres, o que não é pouco. Foi ela, e ele decreta: “depois de dar uma dentro, o melhor é dar o fora”, com licença para estridências da guitarra e percussão corporal.
Quase dez anos depois, porém, o trovador satírico que se valeu do auto-escárnio para fustigar nossos totens e arquétipos, dá lugar ao poeta do riso e da dor que, ao ser desprezado pela musa, ironiza-a concluindo que seu coração foi feito mesmo é para os “amores maiores”. Essa canção – “Tolo fui Eu”- é um espelho de “Tola foi Você”(“agradeço tanto por você/não ter me dado seu amor”), de Ângela RoRo, gravada quatro anos antes.
“A dor de ser enganado me rouba, me tira/o chão debaixo dos pés (Essa tal de Mentira)”; “pra de repente acordar como um cego sem guia/tendo ao meu lado na cama uma alma tão fria (idem)”; ou “mais que o palco iluminado/eu quero esse delicado/ contato da sua mão (Só para o seu Coração)”: canções que expõe o lado simplesmente humano do artista, com versos tão categóricos, tem na RoRo quase que único paralelo dentro da música brasileira contemporânea. Ecos em algo de Cazuza, no disco “Lóki”, do sempre Mutante Arnaldo Baptista, mas é no tratamento que Frejat dá às canções de seu trabalho solo que essa sinceridade aflora e, não por acaso, soa como inovação: “meu rosto vermelho, molhado/é só dos olhos pra fora…lágrimas são água/caem do meu queixo e secam sem tocar o chão (Homem não Chora)”. Embora ainda pareça mais verborréico que o necessário, o espírito é o mesmo do SS: “blues de brasileiro cheio de samba-canção (Doce Melodia)”.
Não se sabe se Frejat conhece esse disco. Mas não dá pra deixar de pensar nos pruridos que acometem nossos compositores quando se trata de falar na primeira pessoa do singular. Vergonha de parecer ridículo, como diz Fernando Pessoa/Álvaro de Campos em “Tabacaria”. Metáforas e hipérboles foram usadas muito bem para driblar a censura, mas dessa época ficou o medo de usar o discurso direto e claro, como se a poesia fosse alheia à clareza e à concisão. Como se poeta e homem vivessem se repelindo como pólos opostos. Porém, “não há nada mais tranqüilo/do que ser o que se sente (Sinceramente)”.
Sérgio conta tudo em “Homem de Trinta”, faixa de abertura: “dancei, mas não sei não, tive cuidado/de ter os pés quase sempre no chão”. Não precisa perguntar mais nada. “Nem Assim”, jóia de 2:25 min, ultrapassa as fronteiras lupicínicas da dor de cotovelo: “você pode ir chorar/no colo da mamãe/dizer pros seus irmãos o quanto eu fui ruim/chamar toda a polícia para me prender/chegar com advogado e ordem do juiz/pode fazer comícios nas praças do Rio/em nome da dignidade da mulher”. Sobra espaço para a irreverência na rumba-rock “Na Captura: agora que eu comprei tv a cores/que eu comprei um som maneiro pra escutar iê-iê-iê/eu vejo como todo mundo/que no fundo só existo/pra procurar você”; e na “Faixa Seis: você hoje pra mim/é a faixa seis do lado B/do meu último LP”.
Sinceridade é rara. E dita assim, bem-dita, é ouro puro. Não é por menos que a Psicanálise, muitas vezes, se aproxima da arte para investigar algo que não pode ser expresso em sua linguagem, e procura, justamente, pela coisa bem-dita.
A constante releitura de si mesmo, quase que um diálogo analítico interno em que fantasmas se defrontam o tempo todo com aquilo que querem ocultar: isso é de Sérgio desde que, vindo de Cachoeiro do Itapemirim, chegou ao Rio para ser locutor da Rádio Relógio, em 1965. E desemboca em seu último disco, o eterno retorno, o tempo, pai de tudo, levando-o vencer a paranóia – “ninho de cobras me olhando (Cabras Pastando, do segundo disco)”-, e fazendo de cada canção seu próprio labirinto e solução. Solução que, nos poucos trabalhos posteriores, vem acrescida de ousadias melódicas e lingüísticas, como em “Rosa Púrpura de Cubatão: minha noite escura/meu barulho de fritura…tão bela menina que não passa da mais fina/nebulosa filha desse miserê”. Presságio de um futuro que não veio.
Recostado na espreguiçadeira, entre as quatro paredes da vida, o teto da casa decolando, o pâncreas em fogo, e o pavio do seu destino, aceso em algum bordel de Cachoeiro…