Contra os do contra: Caetano sobrevive após Tropicália
Como aqueles filhos da classe média que penduram no quarto a bandeira da oposição só pra posarem “do contra”, existem aqueles que criticam Caetano Veloso sem ter noção do despautério que estão dizendo. Os do contra, que ainda tentam comparar Chico e Caetano, também acham que aliterações, anagramas e metáforas são desnecessárias a uma canção. E quem sabe, falar de filosofia é babaquice. Falem de Roberto Carlos então.
“Depois da Tropicália, Caetano Veloso não fez mais nada”. Sim, não fez mais nada, apenas lançou todos os outros álbuns de sua carreira, mais de 30. E quantas frases dessas não foram ditas por aí. O pior, por pessoas que adoram um carnaval e em todo fevereiro cantam “Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu”, mesmo porque já difundiram o trio elétrico do norte ao sul do país.
E os fãs de novela então:
“Ela comeu meu coração/Trincou/Mordeu/Mastigou/Engoliu/Comeu”
Ou:
“Você é meu caminho/Meu vinho/Meu vício/desde o início/Estava você”
Fizeram parte da abertura das novelas A gata comeu e Meu bem meu mal. Pois é, são de Caetano, respectivamente do disco Velô (1984) e Cores Nomes (1982).
A histórica “Atrás do trio elétrico”, por exemplo, está justamente no pós-disco-manifesto-tropicalista, de 1969, o álbum branco de Caetano dedicado ao pai dele, intitulado Caetano Veloso. Histórica porque “desencadeou o incremento dos trios elétricos. Fez Dodô e Osmar voltarem às ruas. Foi o estopim para a onda de novos blocos”, palavras do homem.
Caetano Veloso é o mais tristonho e deprimido de todos os seus discos (gravado em quatro canais) por se tratar de sua condição na prisão, no entanto de uma heterogeneidade sonora espontânea e impressionante. Três línguas, distintos compositores, alusões a escritores em bossa, tango, rock e marchinha de carnaval.
Irene (irmã de Caetano), primeira faixa do disco, nasceu na cadeia (a música), sem violão e remetendo a canções portuguesas. Duas em inglês: Empty Boat, cantada no show de despedida do cantor no Teatro Castro Alves, antes de ir para Londres, e Lost in the paradise. Sobre elas Caetano Veloso disse “…esses aleijões nascidos do pensamento de responder ao bombardeio da língua inglesa me envergonhariam algum tempo depois”. No entanto, o início de Empty Boat “From the stern to the bow/ Oh my body is empty/Yes, my heart is empty/ From the hole to the how” e o refrão de Lost … “Don´t help me my love/My brother, my girl/ Just tell my name/ Just let me say who am I” aludem justamente ao clima conturbado de sua mente. “Hoje, são-me indiferentes”, diz Caetano.
Seguem uma adaptação de Marinheiro Só; a alusão ao poeta Fernando Pessoa em Os Argonautas (“navegar é preciso, viver não é preciso”); uma Carolina, de Chico, tristíssima; Acrilírico com Rogério Duprat (“ato/do amor morto rotor da saudade”); Chuvas de Verão de Fernando Lobo (“podemos ser amigos simplesmente/ coisas do amor nunca mais); Cambalache, um tango irritadíssimo, porém engraçadíssimo de E.S. Discépolo (“Que el mundo fué e será uma porqueria, ya no sé/ Em el 510 y em el 2.000 también) e Alfômega de Gilberto Gil (“o analfagamabetismo/ somatopicopneumático”).
É óbvio que isso não basta para se aplicar o título deste texto. Para tanto fica a sugestão: esqueçam a figura do cantor, sua posição ideológica, e reflitam sobre o descaso com a obra “caetânica”, seguindo apenas quatro e suficientes exemplos: Qualquer Coisa (1975), Sampa (1978), Cajuína (1979) e Língua (1984).
Primeiro, ouça Cajuína com sua filosofia simples e rimas caprichosas. É ou não é uma obra-prima?
Depois Língua, uma mistura de rap e samba, um manifesto em prol da língua portuguesa, cujo trecho “Eu não tenho pátria, tenho mátria e quero frátria” está presente em qualquer livro de iniciação à filosofia.
Em seguida Sampa. Sampa é a declaração mais bonita que uma cidade poderia receber. Que “New York, New York….” que nada! Sampa é um samba requintado, gravado por dezenas de intérpretes, incluindo os Gilbertos, João e Gil. E por último, se você sabe tocar violão, tente Qualquer Coisa. Complexo?
E pra quem ainda não entendeu o recado: pegue a bandeira da oposição e abrace a sua causa, se você acredita mesmo nisso. Porque Caetano (deixo de lado sua posição política atual) teve atitude quando era jovem, durante e depois da Tropicália. Ele, pelo menos fez sua antropofagia cultural (frisando cultural), fez alguma coisa para mudar. Já os jovens de hoje…